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O NEOLIBERALISMO, O VÍRUS E A EUGENIA

Fome em Bengala (1943) na qual o Império Britânico assassinou três milhões de pessoas

2020-04-07

Justin Podur, Global Research/O Lado Oculto

Escrevo num momento em que apenas a China e a Coreia do Sul parecem estar a ter algum tipo de controlo sobre a pandemia de coronavírus. O pacote de estímulo à economia de dois biliões de dólares anunciado pelo governo dos Estados Unidos não contempla a protecção ao emprego, o congelamento das rendas de casa ou apoios significativos aos rendimentos da maioria das pessoas. Onde poderemos procurar analogias que nos ajudem a entender este momento? A crise da SIDA? A crise económica de 2008? A SARS (Síndrome Agudo Respiratório Grave) de 2002-2004? 

Qualquer analogia pode inspirar-se em partes da História. Em 23 de Março, o presidente dos Estados Unidos divulgou a ideia de mandar toda a gente regressar ao trabalho dentro de poucas semanas, ignorando os conselhos dos especialistas em saúde pública. Esta atitude teve ecos no negacionismo de Jair Bolsonaro no Brasil e nas primeiras intervenções do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, sobre a “herd immunity”, a “imunidade do rebanho” através da infecção generalizada, adoptadas pelos seus ministros nos dias que se seguiram. Trata-se, especificamente, de dar prioridade aos pareceres económicos sobre as opiniões dos cientistas, prática que é uma analogia clara com o último grande império: o Império Britânico com a sua propensão especial para desenvolver a fome em massa de milhões de pessoas.

O império da fome

À medida que o Império Britânico se expandia no século XVIII, os seus intelectuais desenvolveram um conjunto perfeito de ideias para uma entidade imperial: a economia clássica. “The Wealth of Nations” (A Riqueza das Nações), de Adam Smith, foi publicado em 1776 a seguir a numerosas guerras genocidas contra povos indígenas nas Américas e no início do Império da Índia.

David Ricardo, Thomas Malthus e John Stuart Mill deram as suas contribuições para a teoria clássica. Logo que os imperialistas consolidaram o seu controlo desmantelaram os sistemas governamentais locais e lançaram a fome em toda a Índia. Shashi Tharoor registou no seu livro “Inglorious Empire”: começou em Bengala em 1770 e depois em Madrasta, Delhi e Bombaim até 1943. Apenas no século XX, 35 milhões de pessoas foram mortas pela fome administrada pelos britânicos na Índia.

Em nome das mesmas doutrinas, os britânicos sujeitaram também os irlandeses à fome, como aconteceu com a fome da batata entre 1845 e 1849. Em 2006, Edward O’Boyle vinculou a fome à economia clássica e identificou os princípios desta: 1. A lei dos próprios interesses; 2. O direito da livre concorrência; 3. A lei da população; 4. A lei da oferta e da procura; 5. O controlo férreo dos salários; 6. A lei do arrendamento; 7. A doutrina do comércio livre.

Aplicadas em conjunto, como escreveu o crítico Karl Polanyi, estas leis sobre o mercado autorregulável “não poderiam existir durante um longo período de tempo sem aniquilar o carácter humano e natural da sociedade; isso destruiria fisicamente o homem e transformaria o ambiente num deserto”.

Durante uma das muitas fomes indianas (no Sul da Índia, 1876-78), o vice-rei britânico Lord Lytton declarou: “Não pode haver intervenção de qualquer tipo do governo para reduzir os preços dos alimentos”. Johann Hari conta a história de um funcionário britânico, Sir Richard Temple, que por ter importado um pouco de comida para distribuir pelos famintos foi denunciado pela revista The Economist por dar aos indianos a noção de que “é dever do governo mantê-los vivos”.

Durante o Império Britânico, a teoria económica clássica e a fome combinaram-se perfeitamente com o racismo, formando uma mistura tóxica. O’Boyle cita uma conferência de 1875 do economista clássico William Stanley Jevons: “A fome passa a ser encarada como uma espécie de acontecimento natural… A guerra é… um estado normal das coisas nas sociedades primitivas. Os índios norte-americanos, por exemplo, têm a guerra como única ocupação séria, único divertimento… a maneira como os irlandeses vivem, especialmente em algumas das nossas grandes cidades e em algumas regiões do seu próprio país torna provável, à priori, que morram depressa”.

O império das sanções

Os britânicos tinham um império da fome. Vivemos num império de sanções. Enquanto o Irão, a Venezuela e Gaza são submetidos à pressão simultânea da pandemia e do cerco, diplomatas pedem aos Estados Unidos que suspendem as sanções até que a crise actual passe. Sem êxito: o assassínio em massa por controlo remoto é uma plataforma política norte-americana demasiado sólida para ser suspensa por causa de uma coisa tão insignificante como uma pandemia global.

Até que ponto a economia foi sendo aprimorada ao longo dos séculos? Até que ponto se foi enraizando mais na realidade? Abundante literatura produzida por estudiosos que se situam no exterior da economia convencional argumenta: “não muito”.

Em 2001, o economista heterodoxo James Galbraith escreveu um artigo no qual listou as cinco proposições amplamente aceites pelas profissões económicas de hoje (“A inflação é… um fenómeno monetário”; “O pleno emprego sem inflação é impossível”; “O aumento das desigualdades salariais decorre das mudanças tecnológicas”; “O aumento do salário mínimo provoca desemprego”; “O crescimento sustentado não pode exceder 2,5% ao ano”). Cada uma delas foi contrariada pelas realidades económicas mas continuam a vigorar apesar disso. No mesmo ano, o economista heterodoxo australiano Steve Keen publicou “Debunking Economics: The Naked Emperor of the Social Sciences” sobre as falhas teóricas e empíricas da ortodoxia convencional.

Uma década depois, no livro “ECONned”, Yves Smith elencou uma série de modos através dos quais os dogmas em que os modelos económicos se baseiam não são sustentados pela realidade (do equilíbrio do mercado à curva da procura). Trabalhos semelhantes abundam, a par de abordagens interessantes da economia real que são rejeitadas pelo mainstream económico.

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