O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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PANDEMIA E SOCIEDADE – ESTATÍSTICAS E POLÍTICA

2020-03-31

Alexandre Weffort

O SARS-CoV-2, vírus que causa a pandemia por COVID-19 (a doença que provoca em cada infectado), tem estado no centro das atenções a nível global. Tema que abarca múltiplas esferas (médica, de saúde pública, económica, cultural, geopolítica), é objecto de escrutínio permanente, contabilizando-se casos, desfechos fatais e também recuperações, números lidos através de modelos de análise estatística em que se projectam em modo prospectivo o impacto provável em cada local, através do conhecimento que se vai tendo dos casos alheios. 

Países mais atingidos, como a China, a Itália e a Espanha ou os Estados Unidos, tornam-se foco da atenção geral. E os comportamentos das comunidades e dos seus líderes adquirem especial presença nos meios noticiosos. 

A China, depois do embate inicial na cidade de Wuhan, desenvolvendo reconhecido esforço no conhecimento do vírus e de contenção da epidemia, fechou a região em que o novo coronavírus apareceu, construiu em tempo recorde hospitais para atender às necessidades da sua população e, depois de contida a epidemia no território, apresta-se agora a ajudar outras nações. 

A Itália, com erros iniciais de abordagem do problema, contabiliza neste momento mais de 11 mil mortos, ultrapassando a China em número de infectados. Por seu lado, a Espanha, segundo país europeu mais atingido e sofrendo consequências gravosas em número de casos e de fatalidades, assumiu perante o impacto económico da crise uma posição de maior clareza na defesa dos direitos laborais, proibindo os despedimentos.

Do outro lado do oceano, os Estados Unidos passaram do negacionismo ao envolvimento de efectivos militares de grande porte, ocupando a cidade de Nova York com 10 mil soldados e decretando a mobilização de um milhão de reservistas. Num período de pouco mais de dois meses, lapso de tempo contabilizado entre os dias 20 de Janeiro e 26 de Março, tornaram-se o epicentro da pandemia, ultrapassando a China em casos confirmados.

Este breve quadro, com os números que circulam pelos media retratando a situação vivida no Mundo, ocultam todavia os problemas maiores. Que queremos com isto dizer? Aqueles números não revelam o grau de impacto social atendendo à demografia (número de habitantes e distribuição etária), nem revelam uma leitura clara, em termos comparados, do desempenho do sistema de saúde dos diversos países pois traduzem, num dado dia, uma realidade que apresenta uma dimensão assíncrona: a epidemia atinge cada país num dado momento, sendo importante, para leituras comparadas, a referência ao momento inicial da contaminação. Outra referência importante é a da contagem dos números de casos, de curas e de fatalidades em relação ao número de habitantes, com o índice de ocorrências por cada milhão de habitantes.

Considerando o que foi dito acima, um site dedicado a estudos demográficos a nível mundial apresenta, em relação aos países referidos neste texto, os seguintes dados (a imagem abaixo foi colhida no dia 28/02/2020, às 19:40h, em Lisboa): 



Vemos, por um lado, uma expressiva ultrapassagem do número de casos havidos no país mais populoso do planeta, que é a China (com mais de 1400 milhões de habitantes), pelos EUA (ca. 330 milhões), por Itália (ca. 60 milhões de habitantes) e, muito em breve, veremos o mesmo em relação a Espanha (com pouco mais que 46 milhões de habitantes). 

Os valores demográficos traduzem-se nos seguintes índices: no quadro exposto, a China apresenta o menor número de casos (57 por milhão de habitantes) e, também, o menor número de fatalidades (2 por milhão de habitantes). Os EUA apresentam um índice de impacto mais expressivo de casos (358 por milhão de habitantes) e de fatalidades (6 por milhão de habitantes). Já a Itália e a Espanha apresentam valores terrivelmente ampliados (a Espanha com 1545 casos e 124 fatalidades por milhão de habitantes e a Itália com 1529 casos e 166 fatalidades por milhão de habitantes). Todavia, os índices referidos devem ainda ser equacionados em função do lapso de tempo decorrido após o surgimento do primeiro caso conhecido e o pico da epidemia: na China, ca. 30 dias (de 20 de Janeiro a 23 de Fevereiro, tendo iniciado nessa altura o decréscimo de casos activos); em Itália, em Espanha e nos EUA, ca. 40 dias e meio (de meados de Fevereiro a final de Março). 

Assinala-se que o lapso de tempo aqui considerado não corresponde às datas oficialmente assumidas, mas sim àquelas em que se vê iniciar a curva ascendente em cada país, e o facto de apenas a China ter atingido o pico e superado efectivamente a epidemia.

A desproporção enorme que se observa entre o número de casos por milhão de habitantes entre países como a China e os EUA (com 57 e 358 casos por milhão de habitantes), e entre estes e Itália e Espanha (com 1529 e 1545 casos por milhão de habitantes, respectivamente), suscita várias interrogações, a começar pelo peso que resulta da estrutura demográfica das nações consideradas. Obriga também a questionar a estrutura de cuidados de saúde existente em cada um desses países e a natureza dos mecanismos de organização interna ao nível da comunidade. Por último, coloca em questão a estratégia seguida em cada país, de combate à pandemia, da rapidez em tomar decisões e da capacidade de as implementar eficazmente. Há ainda a considerar uma outra variável, que depende da fiabilidade dos números fornecidos por cada país. Os casos confirmados são-no apenas depois de testados, havendo muitos casos assintomáticos que o não são, por critérios de racionamento de recursos, e fatalidades que, também por não terem sido objecto de despistagem, não foram atribuídas à COVID-19.

Os números evoluem com rapidez vertiginosa, tornando desactualizados quaisquer quadros que se publiquem. Mas é possível avançar com uma prospectiva em face à evolução dos mesmos. Um caso que se tornou central nas notícias publicadas em Portugal resultou da crítica expressa pelo primeiro-ministro português (António Costa) em relação ao discurso do representante holandês quando este, justificando a posição do seu país (contrária à facilitação de fundos estruturais da União Europeia para o combate à crise em curso) coloca a necessidade de se fiscalizarem os países que agora estão em dificuldades (nomeadamente a Itália e a Espanha), discurso que Costa qualificou como “repugnante”.

O neoliberalismo é mortal

A Holanda, insiste o seu governo pela voz do seu primeiro-ministro Mark Rutte, numa posição crítica à estratégia seguida pelos países latinos (entre eles Portugal): “Na Holanda, os pacientes mais idosos ficarão a receber tratamentos em casa considerando-se que, dadas as poucas hipóteses de sobrevivência, será mais ‘humano’ deixá-los nos seus lares”. Ou seja, completando o pleno sentido da frase daquele governante, trata-se efectivamente de “deixá-los morrer nos seus lares”.

A Holanda afirma assim uma política selectiva à partida, eliminando as possibilidades de sobrevivência da sua população mais idosa, o que explica que, seguindo os indicadores de desempenho perante a crise, tenhamos neste momento a Holanda com os índices de 634 casos e 45 fatalidades por milhão de habitantes. Mas mais séria ainda é a relação entre casos recuperados e as fatalidades - na Holanda a morte ganha praticamente a 100%! E, tendo a Holanda nesta data (29/03/2020) cerca de 900 casos de risco (em condição séria ou crítica), podemos assumir que o número de fatalidades será muito mais expressivo.

A diferença de estratégias tem raízes culturais e ideológicas. No caso da Europa, a crispação ente os PM de Portugal e da Holanda tornou evidente algo que se remetia para a esfera dos discursos mais radicais: a falência política do modelo de união seguido na Europa que, com esta crise logo depois do Brexit, ameaça declarar a sua inutilidade superveniente. Colocou à vista uma ideologia desumana, de quem apenas concebe a realidade presa a cifrões, e apontou a questão que hoje se coloca a todos: a necessidade de ampla união em torno de uma política humanista, política a concretizar nas estratégias de combate ao novo coronavírus e, também, no modo como os Estados assumirão as consequências (que já se fazem sentir) também a nível económico e para todos os povos e nações. É, neste quadro, que as palavras recentes do Papa Francisco ressoam: já há quem, com a suspensão das actividades laborais, comece a passar fome! 

A contradição a enfrentar no momento coloca-se nesta questão: de que forma pode uma comunidade sobreviver sem produção, sem o rendimento do trabalho, estando confinada ao espaço doméstico, com os contactos sociais fortemente condicionados?

A questão irá colocar-se ao nível dos modos de produção e do acesso aos instrumentos de produção, dos padrões de consumo e da distribuição efectiva da riqueza. E, perante o cenário actual, há dois caminhos: uma economia capitalista de guerra (com a requisição estatal de bens e equipamentos privados, com o domínio estatal da produção de bens essenciais, o racionamento e a distribuição de alimentos e outros produtos essenciais) ou uma economia de tipo socialista, onde a vida da sociedade se organize, efectivamente, em função de valores humanistas.

A ideologia neoliberal, no que respeita à pandemia, caracteriza-se pelo negacionismo inicial, pela estratégia seguinte de isolamento vertical, pela estratégia (que já nem sequer oculta) de eliminação da população idosa, pelo ziguezaguear de acções e pela proliferação de informações perigosamente confusas, pondo em risco populações inteiras; essa ideologia neoliberal assume uma feição que se pode qualificar (pelas acções e pelas omissões) como verdadeiramente criminosa, irmanando Trump e Bolsonaro aos quais se vão colando aqueles que acabam por enterrar a União Europeia na sua incapacidade de enfrentar o momento com dignidade.


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