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O WESTLESSNESS OU UMA CRISE EXISTENCIAL DO COLONIALISMO

A Conferência de Segurança de Munique

2020-02-21

Westlessness. Poderá traduzir-se como o défice de Ocidente na cena internacional e foi o mote escolhido para a Conferência de Segurança de Munique deste ano, em 16 e 17 de Fevereiro, como sempre uma organização associada à NATO. Percebeu-se, pela escolha desta temática, que o Ocidente vive uma crise existencial, com saudades de tempos recentes em que podia destroçar a Jugoslávia, bombardear a Sérvia, arrasar o Afeganistão, desmembrar o Iraque e a Líbia sem ter contraditório. Na origem da inquietação ocidental está, como foi abundantemente aflorado como eco da exposição do chefe do Pentágono, a crescente presença da Rússia e da China na arena internacional - que se reflecte no aparecimento de um efeito dissuasor da impunidade colonial. Não admira, portanto, e perante a presença de convidados “inimigos”, que às tantas à conferência tivesse parecido um diálogo de surdos. 

Pepe Escobar*, Asia Times/O Lado Oculto

Poucas pantomimas políticas pós-modernas têm sido mais reveladoras do que os centenas de "tomadores de decisão internacionais", a maioria ocidentais, animados, enojados ou nostálgicos com a ideia de "Westlessness" na Conferência de Segurança de Munique (CSM). 

O "Westlessness" soa como um daqueles conceitos saídos de uma ressaca pós-festa na Rive Gauche parisiense da década de setenta. Em teoria (mas não na teoria francesa), o Westlessness na era do Whatsapp pode significar um défice de acção multinacional para enfrentar as ameaças mais prementes à “ordem - ou (des) ordem - internacional” como o nacionalismo, desdenhado como uma ridícula onda populista.

No entanto, o que Munique realmente revelou foi uma profunda saudade - Ocidental - daqueles dias efervescentes do imperialismo humanitário, com o nacionalismo em todas as suas vertentes a ser apontado como o vilão que impede o avanço incansável das lucrativas e neocoloniais Forever Wars (guerras sem fim).

Por mais que os organizadores da CSM - um grupo atlantista robusto - tentassem direccionar as discussões para por em destaque a necessidade dessa acção multinacional, surgia sempre uma série de temas espinhosos que iam da migração descontrolada à "morte encefálica" da NATO, anunciada como uma consequência directa do "aumento de um campo neoliberal e nacionalista no mundo ocidental ". Como se isso fosse um problema perpetrado por uma Hidra todo-poderosa com as cabeças de Bannon-Bolsonaro-Orban.

Longe desses dirigentes pró-Ocidente em Munique esteve a coragem de admitir que vários contragolpes nacionalistas também traduzem reveses para o implacável saque ocidental do Sul Global por meio de guerras - quentes, frias, financeiras, espoliativas (por corporações).

Indo ao que vale a pena, aqui está o relatório da CSM. Apenas duas frases seriam suficientes para desmontar o jogo desta edição da conferência: “Na era pós-Guerra Fria, as coligações chefiadas pelo Ocidente eram livres de intervir em quase qualquer lugar. Na maioria das vezes, havia apoio do Conselho de Segurança da ONU e, sempre que uma intervenção militar era lançada, o Ocidente desfrutava de uma liberdade de movimento militar quase incontestada.”

Ai está. Esses eram os dias em que a NATO, com total impunidade, podia bombardear a Sérvia, perder miseravelmente uma guerra no Afeganistão, transformar a Líbia num inferno das milícias e planear numerosas intervenções em todo o Sul Global. E é claro que nada disso tinha qualquer ligação com o facto de os bombardeados e os invadidos se verem forçados a tornar-se refugiados na Europa.

Guerra Fria recriada

Em Munique, a ministra dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Sul, Kang Kyung-wha, aproximou-se do ponto quando disse que considerava o “Westlessness" bastante insular como tema. Fez questão de realçar que o multilateralismo é uma característica fortemente asiática, reflectindo a maneira de actuar da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, com a sua elegância habitual, foi mais agudo, observando como "a estrutura da rivalidade da Guerra Fria está a ser recriada" na Europa. Lavrov foi prodigiosamente eufemístico quando notou como as "tensões crescentes, o avanço da infraestrutura militar da NATO para o Oriente, os exercícios de alcance sem precedentes perto das fronteiras russas, o incremento dos orçamentos de defesa além da conta - tudo isso gera imprevisibilidade".

No entanto, foi o conselheiro de Estado chinês e ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, quem realmente atingiu o coração do assunto. Ao sublinhar que “é urgente fortalecer a governança global e a coordenação internacional”, disse, “precisamos de nos libertar da cisão entre o Oriente e o Ocidente e ir além da diferença entre o Sul e o Norte, numa tentativa de construir uma comunidade com um futuro partilhado para a humanidade.”

 “Comunidade com um futuro partilhado” pode ser a terminologia padrão de Pequim, mas carrega um significado profundo pois incorpora o conceito chinês de multilateralismo, no qual nenhum Estado tem prioridade individual e em que todas as nações partilham os mesmos direitos.

Wang foi mais longe: o Ocidente - com ou sem Westlessness – deveria libertar-se da sua mentalidade subconsciente de supremacia civilizacional; desistir dos seus preconceitos contra a China; e “aceitar e acolher o desenvolvimento e a revitalização de uma nação do Oriente com um sistema diferente do que existe no Ocidente”. Wang é um diplomata suficientemente sofisticado para saber que isso não vai acontecer.

Wang também não conseguiu deixar de fazer elevar as sobrancelhas da multidão para níveis alarmantes quando realçou, mais uma vez, que a parceria estratégica Rússia-China será aprofundada - além de explorar "maneiras de coexistência pacífica" com os Estados Unidos e uma cooperação mais profunda com a Europa.

O que se esperava do chamado "líder do sistema" em Munique era bastante previsível. E foi apresentado, fiel ao script, pelo actual chefe do Pentágono, Mark Esper, outro velho conhecido das danças das cadeiras de Washington.

A ameaça do século XXI

Todos os pontos de vista do Pentágono foram expostos por Esper. A China não é nada menos que uma ameaça crescente à ordem mundial - uma "ordem" ditada por Washington. A China rouba o know-how ocidental; intimida todos os seus vizinhos menores e mais fracos; busca uma "vantagem por qualquer meio e a qualquer custo".

Como se fosse necessário algum lembrete a esse público já bem informado, a China foi novamente colocada no topo das "ameaças" do Pentágono, seguida pela Rússia, pelos "Estados desonestos" do Irão e Coreia do Norte e por "grupos extremistas". Ninguém lhe perguntou se a al-Qaida na Síria faz parte da lista.

O "Partido Comunista e os seus órgãos associados, incluindo o Exército de Libertação Popular", foram acusados de "operar cada vez mais em teatros fora das fronteiras da China, inclusive na Europa". Todo a gente sabe que apenas uma "nação indispensável" está autorizada a operar "em teatros fora de suas fronteiras" para bombardear outros em nome da democracia.

Não é de admirar que Wang tenha sido forçado a qualificar todos os itens acima citados como “mentiras”: “A causa raiz de todos esses problemas e questões é que os Estados Unidos não querem ver o rápido desenvolvimento e rejuvenescimento da China, e querem menos ainda aceitar o êxito de um país socialista".

Então, no final, Munique desintegrou-se na bulha de gatos que dominará o resto do século. Com a Europa de facto irrelevante e a União Europeia subordinada aos desígnios da NATO, o Westlessness é realmente apenas um conceito vazio e constipado: toda a realidade é condicionada pela dinâmica tóxica da ascensão da China e do declínio dos EUA.

A irretocável Maria Zakharova, porta-voz do Ministério russo da Defesa, acertou mais uma vez: “Eles falam desse país (China) como uma ameaça para toda a humanidade. Dizem que a política da China é a ameaça do século XXI. Tenho a sensação de que estamos a testemunhar, através dos discursos proferidos na conferência de Munique em particular, o renascimento de novas abordagens coloniais, como se o Ocidente deixasse de considerar vergonhoso reencarnar o espírito do colonialismo através da divisão de povos, nações e países."

Um destaque absoluto da CSM aconteceu quando a diplomata chinesa Fu Ying, presidente de Relações Exteriores do Congresso Nacional do Povo, esmagou a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, com uma simples pergunta: “A senhora acha realmente que o sistema democrático é tão frágil que pode ser ameaçado pela Huawei?

*Jornalista e correspondente de várias publicações internacionais


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