EFEITO IRLANDA: O REINO UNIDO AMEAÇA RUIR

2020-02-17
Norman Wycomb, Dublin; Exclusivo O Lado Oculto
As eleições de Dezembro no Reino Unido e as de 8 de Fevereiro na República da Irlanda geraram um terramoto político muito abafado pela comunicação social corporativa e que pode ser o princípio do fim do Reino Unido tal como o conhecemos. Pela primeira vez em mais de cem anos, o Sinn Fein, o principal partido pela reunificação da Irlanda, venceu eleições praticamente simultâneas na República da Irlanda e na Irlanda do Norte. Significa isso que um eventual referendo, previsto nos Acordos de Sexta-Feira Santa (1998), poderá implicar a libertação de toda a Irlanda do que resta do colonialismo britânico. E o independentismo escocês pode seguir pelo mesmo caminho. O Reino Unido ameaça ruir.
O Sinn Fein está a desenvolver esforços que conduzam a um referendo sobre a reunificação irlandesa depois da sua impressionante vitória nas eleições gerais de 8 de Fevereiro na República da Irlanda. A medida põe realisticamente em causa a composição actual do Reino Unido.
As eleições irlandesas vieram agora reactivar as perspectivas de reunificação política da ilha, uma vez que os velhos “partidos Estado” da República, o Fianna Fail e o Fine Gael, praticamente tinham abandonado esse objectivo, ao contrário do Sinn Fein. Os sectores nacionalistas escoceses, por seu turno, intensificaram as diligências para convocação de um referendo sobre a independência. As suas acções têm um forte suporte na vitória clara alcançada nas eleições britânicas de Dezembro no território da Escócia.
A questão irlandesa adquiriu forte impulso com a vitória histórica do Sinn Fein nas urnas da República, onde se tornou, pela primeira vez, o partido com maior votação popular. O partido bateu os dois principais partidos do establishment que dominam o governo de Dublin há quase um século. O status quo bipartidário foi esmagado pela proeza do que foi braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA).
A actual dirigente do Sinn Fein, Mary Lou McDonald, afirmou que o governo de Londres deve agora preparar-se para a realização de um referendo na ilha sobre a questão da reunificação da República da Irlanda com os cinco condados da Irlanda do Norte. Este território está ocupado pelos britânicos desde 1921, ano em que o movimento libertador irlandês não conseguiu que a independência em relação ao Império Britânico abrangesse toda a ilha.
O Sinn Fein é o único partido a ter uma estrutura que abrange a totalidade do território da Irlanda. Nas eleições britânicas realizadas em Dezembro passado, o antigo braço político do IRA venceu pela primeira vez na Irlanda do Norte. As mudanças demográficas registadas ao longo do século passado permitiram que os republicanos estejam agora em condições de alcançar triunfos eleitorais sobre os unionistas – que defendem a permanência do território no Reino Unido.
Nas eleições de 8 de Fevereiro na República da Irlanda o Sinn Fein foi o partido mais votado, embora tenha ficado com menos um deputado (37) que os neoliberais do Fianna Fail (38), devido às distorções proporcionadas pelo sistema eleitoral uninominal, talhado em favor das organizações de direita. O Sinn Fein tenta agora capitalizar as vitórias consecutivas alcançadas nas duas jurisdições da Irlanda para criar condições no sentido de que seja convocado um referendo capaz de permitir, finalmente, a libertação total da Irlanda em relação à Grã-Bretanha.
Difícil mas possível
Os resultados de 8 de Fevereiro não permitiram antever ainda a formação de uma maioria governamental, tanto mais que os dois partidos que formam habitualmente o executivo ficaram ainda a oito deputados da maioria absoluta no Parlamento de Dublin (81). Fianna Fail (38) e Fine Gael (35) somam 73 lugares. Os 37 lugares do Sinn Fein também estão muito longe dos necessários para governar com maioria a partir do Parlamento (160 lugares). Só é possível governar agora a República da Irlanda com coligações inovadoras em relação ao padrão habitual.
Uma das razões do êxito popular do Sinn Fein ficou a dever-se a uma campanha eleitoral muito activa e contundente na demonstração dos fracassos económicos e da ditadura da austeridade praticada pelos dois partidos de direita. Problemas sociais graves decorrentes das desigualdades económicas, da escassez crónica de habitação e da falta de serviços públicos tornaram muito convincente a palavra de ordem do Sinn Fein, “trabalhadores e mudança”, e a sua configuração de uma política de esquerda.
As eleições traduziram uma reprovação para os dois partidos até agora dominantes no panorama político governamental. Ambos sofreram importantes perdas de lugares em relação à anterior consulta, em 2016. E as conquistas do Sinn Fein foram ainda acompanhadas por ganhos de outros partidos mais pequenos, designadamente os Verdes (12 lugares), os trabalhistas (6), os Sociais-Democratas (6) e o Partido as Pessoas Primeiro que os Lucros (PPL, 5), além da subida do número de deputados independentes (19).
Mary Lou McDonald, presidente do Sinn Fein, afirma que tentará formar uma coligação com os partidos menos votados e os independentes, muitos dos quais já manifestaram a sua disponibilidade. Trata-se de formar “um governo do povo pela mudança”, nas palavras de McDonald. A soma dos lugares do Sinn Fein com os Verdes, os Trabalhistas, os Sociais-Democratas, o PPL e parte dos independentes poderia formar um governo sem recorrer a qualquer dos partidos dominantes – que também não aceitariam essa possibilidade. Mary Lou McDonald tem a possibilidade, por isso, de se tornar a próxima primeira-ministra da República da Irlanda.
Mais de um século de luta pela independência
Esta situação, combinada com a maioria do Sinn Fein na Irlanda do Norte, representa, de facto, um quadro muito favorável à reunificação e à libertação de todo o território irlandês em relação à Grã-Bretanha.
Parece haver agora, como nunca em quase 100 anos, uma dinâmica favorável a um processo de restauração da justiça natural. O Sinn Fein é o mais antigo partido político da Irlanda. Fundado em 1905, dirigiu historicamente o movimento pela independência quando toda a Irlanda estava sob o domínio colonial britânico. Em eleições gerais britânicas realizadas em 1918, o Sinn Fein obteve mais de 70% dos votos em toda a ilha, à frente de uma plataforma pela independência. Londres rejeitou a vontade expressa democraticamente pelos irlandeses e envolveu-se numa guerra sangrenta contra a independência que culminou com a divisão política da ilha: a República da Irlanda e uma entidade designada Irlanda do Norte, de maioria religiosa protestante, colonizada pela Grã-Bretanha.
Nenhum dos dois principais partidos irlandeses, Fianna Fail ou Fine Gael, assumiu a defesa da reunificação como um objectivo político. Resultante de uma cisão do Sinn Fein durante os anos vinte do século passado, o Fianna Fail adoptou o rótulo “republicano” mas praticamente abandonou a ideia da libertação de todo o território. Ao longo de décadas o establishment político partilhado pelos dois partidos de direita foi o cenário de uma política paroquial, de compadrio e distanciamento em relação aos interesses populares.
Entre a guerra e a paz
Durante essas décadas, o Sinn Fein foi alvo de uma permanente campanha associada ao conflito armado da Irlanda do Norte entre o IRA e as forças repressivas coloniais britânicas, que protegiam o terrorismo dos “unionistas”, também redutoramente conhecidos como “protestantes”. Na realidade, nos cinco condados não existiu uma guerra religiosa mas sim uma luta pela libertação de um território e a unificação de um povo.
Muitos eleitores irlandeses foram alienados, ao longo dos anos, pelas interpretações mediáticas e propagandísticas que associavam o Sinn Fein ao “terrorismo” sem que isso fosse contrariado pelos dois partidos governamentais da República. Ainda hoje existe esse clima dos dois habituais partidos de governo para com o Sinn Fein: ambos afirmaram na última campanha eleitoral, com profundo desprezo pelas opiniões populares, que não formariam um governo de coligação com o Sinn Fein devido às suas anteriores ligações com o Exército Republicano Irlandês.
O conflito armado na Irlanda do Norte terminou há mais de 20 anos, em 1998, com a assinatura de um compromisso de paz, o Acordo de Sexta-Feira Santa. Nesse documento internacionalmente vinculativo o governo britânico comprometeu-se com a unificação irlandesa se a maioria da população da ilha se pronunciar nesse sentido. Cabe, no entanto, ao representante de Londres em Belfast, Irlanda do Norte, decidir sobre a convocação de um referendo.
Muitos eleitores, como provaram em 8 de Fevereiro, deixaram o conflito para trás. E a velha habilidade de demonizar o Sinn Fein perdeu eficácia. Questões económicas e sociais passaram a dominar as preocupações dos eleitores – os dois partidos do establishment são vistos como parte do problema e não da solução.
Se o Sinn Fein conseguir dirigir o próximo governo em Dublin, a questão da unidade irlandesa estará no topo das suas tarefas. As negociações para formação de uma coligação política que sustente o executivo poderão prolongar-se durante semanas.
Um eventual referendo sobre a reunificação da Irlanda e as diligências dos nacionalistas escoceses para alcançarem a independência poderão colocar realmente em risco essa amálgama que dá pelo nome de Reino Unido, envolvendo Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte.