O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

O Lado Oculto é uma publicação livre e independente. As opiniões manifestadas pelos colaboradores não vinculam os membros do Colectivo Redactorial, entidade que define a linha informativa.

Assinar

ACTO DE GUERRA DE WASHINGTON CONTRA TRÊS ESTADOS SOBERANOS

Iranianos nas ruas contra o assassínio do general Soleimani

2020-01-03

José Goulão, com Edward Barnes, Bagdade; Exclusivo para O Lado Oculto

O acto de guerra cometido em 3 de Janeiro pelos Estados Unidos contra o Iraque, o Irão e o Líbano ao atacarem o aeroporto internacional de Bagdad e assassinarem altos dirigentes iraquianos, iranianos e libaneses aumenta dramaticamente o nível de instabilidade em todo o Médio Oriente e multiplicará o número de incidentes militares através da região. Os assassínios encomendados pessoalmente pelo presidente Trump, na sequência da reunião de Lisboa entre Michael Pompeo e Benjamin Netanyahu, têm ainda uma relevante particularidade: representam uma espécie de ajuste de contas com operacionais e organizações que foram fulcrais no combate a organizações terroristas como o Isis ou Estado Islâmico e a al-Qaida.

Na sequência de ameaças formuladas por Donald Trump, pelo secretário de Estado Pompeo e pelo secretário da Defesa, Michael Esper, um ataque com um drone Reaper contra o maior aeroporto internacional do Iraque matou oito pessoas, entre elas o general Qassem Soleimani, chefe dos Guardas da Revolução do Irão; o deputado iraquiano Abu Mahdi al-Mouhandis, considerado o número dois das Unidades de Mobilização Popular (PMU), o segundo maior bloco parlamentar iraquiano; Mohamed Reda al-Jabri, chefe de comunicação do PMU; e Mohamed al-Kawtharawi, alto dirigente do Hezbollah, força político-militar que integra o governo do Líbano.

Segundo a versão norte-americana, a operação foi uma “resposta” aos ataques feitos por manifestantes iraquianos contra a embaixada dos Estados Unidos em Bagdade depois do bombardeamento aéreo de instalações da milícia libanesa Kataeb Hezbollah, uma facção integrante do segundo maior bloco parlamentar. Washington ainda não apresentou qualquer prova material de que um suposto ataque desta milícia contra uma base ocupada perto de Kirkuk tenha provocado a morte de um contratado civil do Pentágono e ferimentos em quatro soldados norte-americanos.

Do ponto de vista operacional, o ataque corresponde à matriz dos chamados “assassínios selectivos” praticados pelas forças militares de Israel contra Gaza. O que torna óbvio o papel desempenhado pela reunião conspirativa de início de Dezembro em Lisboa nos acontecimentos agora em curso no Iraque.

Em termos concretos, o ataque contra o aeroporto de Bagdade foi uma operação premeditada de assassínio; e um passo de um nível até agora não atingido na escalada de guerra norte-americana e israelita contra o Irão – envolvendo também o Iraque e o Líbano. Circunstâncias que o secretário da Defesa norte-americano definiu com a frase: “o jogo com o Irão mudou”.

À revelia das autoridades iraquianas

Apesar da ocupação militar norte-americana do Iraque estar definida no âmbito de acordos com o regime instaurado pelos Estados Unidos em Bagdade, o ataque contra o aeroporto desta cidade aconteceu totalmente à revelia das autoridades eleitas: governo e parlamento.

De notar ainda que o deputado Hadi al-Amiri, chefe político do PMU e da Brigada al-Badr, e Qai al-Khazae, chefe militar do PMU, foram presos durante operações realizadas por marines norte-americanos nos arredores de Bagdade. O secretário de Estado norte-americano, Michael Pompeo, definira al-Amiri, na véspera, como “um activo iraniano”.

Adel Abdul al-Mahdi, primeiro-ministro iraquiano em funções, condenou “os assassínios” e acrescentou que “os Estados Unidos quebraram as condições em que actuam no país”. Ainda segundo o chefe do governo de Bagdade, o ataque realizado “está na linha das actuações que levam cada vez mais frequentemente o governo e o parlamento a discutirem a saída das tropas norte-americanas do Iraque”.

O governo iraquiano, que declarou três dias de luto nacional em memória das vítimas da operação, declarou-se “forçado a rever” as relações com os Estados Unidos. Entretanto, o Pentágono aprovou o envio de mais 3500 militares para o Iraque, prevendo-se que o número venha a atingir os cinco mil – duplicando o actual contingente de ocupação. Os primeiros 750 paraquedistas já foram destacados para o Koweit. Segundo o Departamento da Defesa, trata-se de tomar precauções contra a resposta que o Irão prometeu dar à morte do general Soleimani.

“Um acto de terrorismo internacional”

O Irão reagiu ao assassínio do general Qassem Soleimani qualificando-o como “um acto de terrorismo internacional”, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, Javad Zarif.

Chefe do Corpo de Guardas Revolucionários, Soleimani era um militar popular no Irão e chegou a ser dado como eventual candidato presidencial nas eleições de 2021. Só o seu apego à carreira militar pôs termo a essas especulações.

Como contraponto a este prestígio interno e no seio das comunidades xiitas em geral, o sistema de propaganda norte-americano montou uma campanha de pretenso “júbilo” manifestado no Irão e no Iraque com a morte do general. “Iraquianos dançando nas ruas” foi um dos motes da campanha, que incluiu igualmente a repescagem de “tweets” anónimos “agradecendo a Trump” a liquidação do general.

Segundo os conteúdos do meio de expressão favorito do presidente norte-americano, o “Tweeter”, Soleimani “foi responsável pela morte e ferimentos de milhares de soldados norte-americanos”. Soldados que se encontravam em países estrangeiros participando em guerras de agressão.

O ayatollah Khamenei, chefe religioso da revolução iraniana, declarou que o assassínio do general não ficará “sem vingança”, a qual, segundo o ministro da Defesa, será “uma resposta esmagadora”.

A forma que assumirá essa resposta levanta muitas interrogações, sabendo-se, por outro lado, que o Irão costuma pesar muito bem as suas actuações. Desta feita, porém, o golpe tem um significado político muito elevado para o regime iraniano porque os Guardas da Revolução são um corpo de defesa das comunidades xiitas no exterior do país; o assassínio do seu chefe assume, por isso, um carácter de agressão a uma comunidade religiosa islâmica transnacional e a retaliação pode surgir nesse quadro. De notar que interesses xiitas estão em jogo em países instáveis como o Líbano, a Síria, o Iémen, o Bahrein, o Qatar, o próprio Iraque; nações onde, por outro lado, é muito fácil identificar quais são os interesses norte-americanos.

Estas circunstâncias, por si sós, transformam a operação contra o aeroporto de Bagdade num potencial detonador de focos de instabilidade através do Médio Oriente, em especial na região do Golfo.

Uma alegria para a al-Qaida

Para a al-Qaida e o que resta do Estado Islâmico as horas que passam são de alegria com a morte daquele que era, talvez, o seu mais eficaz inimigo.

O general Soleimani era, mesmo para analistas que discordavam frontalmente da sua actuação, um brilhante tacticista da guerra contra o terrorismo cujas origens remontam aos tempos de Bin Laden e da CIA no Afeganistão.

A actividade internacional do corpo de Guardas da Revolução foi uma fonte das maiores derrotas da al-Qaida, designadamente na Síria – ao lado das tropas governamentais e das forças russas – e no Iraque, ao lado das milícias que contribuíram para destroçar o Daesh, Isis ou Estado Islâmico. O Kataeb Hezbollah, grupo contra o qual os Estados Unidos efectuaram o bombardeamento que está na base da actual escalada de guerra, combateu ao lado tropas norte-americanas quando estas decidiram, transitoriamente, actuar contra o Daesh.

No entanto, a estratégia das intervenções norte-americanas nas guerras do Médio Oriente recorreu vezes de mais à al-Qaida e ao Estado Islâmico para que a actividade de milícias xiitas contra esses grupos fosse bem vista em Washington. O assassínio do general Soleimani e os actos de guerra contra grupos como o Kataeb Hezbollah, o próprio Hezbollah – a quem não se perdoam as derrotas que impôs a Israel no Líbano – e o PMU iraquiano são, no fundo, ajustes de contas contra quem contesta o poder militar absoluto norte-americano e os seus braços terroristas. Razão de ser profunda da guerra que é movida contra o Irão.

Componente interna

A operação contra o Iraque está longe de suscitar unanimidade nos Estados Unidos, mesmo no interior do partido único com duas faces.

Ao anunciar o êxito das suas execuções extrajudiciais Donald Trump fez um remoque aos democratas afirmando que o que aconteceu agora ao general Soleimani “já deveria ter ocorrido há muito”.

Em pleno clima pré-eleitoral, no qual deve ser inserida a decisão de elevar o nível da agressão ao Irão, o principal adversário do presidente, Joseph Biden, qualificou a operação como uma imprudência que poderá custar vidas de cidadãos norte-americanos. Uma opinião que foi partilhada por Marc Polymeropoulos, veterano especialista em contra-terrorismo da CIA, segundo o qual “o público norte-americano deve esperar a perda de vidas norte-americanas decorrente deste acto”.

São várias as análises sublinhando que Trump “pisou o risco” no afã de desviar as atenções do impeachment e da sua vertente ucraniana através de um gesto capaz de mobilizar as atenções gerais. O que poderá, por outro lado, ter um efeito contraproducente, até mesmo para a sua recandidatura, se a prometida resposta iraniana estiver ao nível dos acontecimentos que estão na sua origem. A situação poderá virar-se contra o próprio presidente, admite-se

Depois de um acto de guerra com as características do praticado pelos Estados Unidos contra três nações soberanas, a “comunidade internacional” parece privilegiar o apelo à “contenção” da parte iraniana. Uma formulação usada para fingir que não aconteceu mais um acto de Washington contra o direito internacional, que passa assim – e mais uma vez - sem condenação.


fechar
goto top