O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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TPI, A JUSTIÇA INTERNACIONAL DE FAZ DE CONTA

2019-12-29

O Estatuto de Roma e o Tribunal Penal Internacional (TPI) estão em vigor há 17 anos, coincidindo este período com guerras terríveis como as do Afeganistão, do Iraque, da Líbia e da Síria. Nas instâncias daquele tribunal não há conhecimento de qualquer acção concreta contra crimes de guerra praticados por tropas dos principais fazedores de guerra, os Estados Unidos e os seus aliados da NATO. Por não praticarem crimes de guerra? Não é o que consta de sucessivos relatórios com provas gritantes, mas cujos conteúdos se esfumam no ar. A “justiça internacional” é apenas um instrumento de faz de conta

Vijay Prashad, Globetrotter/Independent Media Institute/O Lado Oculto

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, demitiu o seu secretário da Marinha através do Twitter. A principal razão foi o facto de não ter acatado o parecer presidencial em relação a Edward Gallagher, um operacional das forças especiais. Trump pretendia que Gallagher mantivesse o seu posto de Navy SEAL depois de ter sido acusado de apunhalar até à morte um membro do Isis ferido em 2017; foi igualmente acusado de outros crimes, incluindo os assassínios de uma estudante, de um homem idoso e obstrução à justiça. Em Julho, um tribunal militar absolveu Gallagher da maioria dos crimes, mas considerou-o culpado de se fazer fotografar com o cadáver do homem que esfaqueou até à morte.

O caso de Gallagher apenas surgiu nas primeiras páginas por causa da intervenção de Trump. Em geral, quando surgem acusações de crimes de guerra ou de “mau comportamento” de tropas, alguns episódios começam a ser investigados mas depois esfumam-se. Relatório atrás de relatório, nos últimos 18 anos amontoaram-se crimes de guerra cometidos no Afeganistão e no Iraque. A Guerra dos Estados Unidos e da NATO contra o Afeganistão começou em 2001; a agressão contra o Iraque iniciou-se em 2003. Dificilmente se passa um dia nestes países sem que os militares norte-americanos e da NATO cometam crimes de guerra.

Logo em 21 de Dezembro de 2001, as Nações Unidos pretenderam inteirar-se de relatórios sobre “execuções sumárias de prisioneiros assim que são capturados”; a iniciativa foi motivada pelas notícias que correram sobre a morte de dois mil prisioneiros talibã em Qala-i-Jangi, nas imediações de Mazar-i-Sharif, “sufocados até à morte ou baleados em contentores transportados em camiões”. As informações estão contidas num documento da organização Physicians for Human Rights. Em 2009 ficou claro que a administração norte-americana de George W. Bush obstruiu todas as investigações sobre essa atrocidade específica. Ninguém foi levado a tribunal por esse crime de guerra.

O que é um “crime de guerra”? O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que entrou em vigor em 2002 mas foi redigido em 1998, define crimes de guerra como “graves violações das leis e práticas aplicáveis em conflitos armados internacionais”. Incluem ataques contra civis, contra pessoas que se tenham rendido, contra instituições médicas e culturais e também a utilização de armas biológicas ou químicas.

O Estatuto de Roma baseia-se em 100 anos de precedentes legais estabelecidos nas Convenções de Genebra e nas Convenções de Haia. Não há ambiguidades neste estatuto, que deveria ser estudado por crianças em idade escolar, sobretudo em países que têm o hábito de desencadear guerras.

Tribunal Penal Internacional

Os Estados Unidos não fazem parte do Tribunal Penal Internacional (TPI). Contribuíram para que fosse criado, mas depois mudaram de posição e recusaram-se a submeter-se à jurisdição do tribunal. Em 2002, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Protecção dos Membros dos Serviços Americanos, mecanismo que permite ao governo dos Estados Unidos “usar todos os meios” para proteger as suas tropas dos procuradores do TPI. O artigo 98º do Estatuto de Roma não exige que os Estados entreguem pessoas procuradas por terceiros se esses Estados assinaram um acordo de imunidade com terceiros; portanto, o governo dos Estados Unidos incentivou os outros Estados a assinar esses “acordos do artigo 98º” para que as suas tropas tenham imunidade em eventuais processos.

A enorme quantidade de provas de crimes de guerra cometidos pelas tropas norte-americanas e aliadas no Afeganistão e no Iraque pesou na credibilidade do TPI. Em 2016, após uma década de investigações, o TPI divulgou um relatório que levou esperança ao povo afegão. O Tribunal Penal Internacional considerou que havia “uma base razoável” para continuar a investigação de crimes de guerra cometidos por várias forças no Afeganistão, designadamente os Talibã, a rede Haqqani e as forças militares dos Estados Unidos em conjunto com a Central Intelligence Agency (CIA). No ano seguinte, o TPI avançou com um reconhecimento mais pormenorizado da possibilidade de terem sido cometidos crimes de guerra. As pressões sobre o procurador do TPI aumentaram.

As pressões contra o TPI

Tudo pareceu terminar aqui. A administração Trump, através do então conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, e do secretário de Estado, Michael Pompeo, tornou claro que se o TPI prosseguisse com um único caso contra os Estados Unidos o governo de Washington perseguiria o procurador do TPI para o julgar pessoalmente. Um pedido de visto norte-americano apresentado pela procuradora do TPI, Fatou Bensouda, para comparecer perante as Nações Unidas foi recusado. Foi um tiro no pé: não parecia ser o melhor caminho para os Estados Unidos.

No entanto, pouco tempo depois, em Abril de 2019, o TPI declarou que não iria prosseguir com os casos de crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos ou por qualquer outro dos beligerantes no Afeganistão. Segundo o tribunal, prosseguir com as investigações “não serviria os interesses da justiça”.

Trump comentou a decisão qualificando o TPI como “ilegítimo” mas saudando a sua decisão como “uma vitória não apenas para os patriotas mas também para o Estado de direito”.

Os funcionários do TPI ficaram indignados com a decisão dos principais responsáveis do tribunal. Procuraram contestá-la por temerem que o TPI perdesse toda a credibilidade que lhe resta ao deixar as tácticas mafiosas de Washington impedirem os seus próprios procedimentos. Na realidade, o TPI continua a ser encarado como um órgão vocacionado principalmente contra os inimigos dos Estados Unidos; não houve ainda qualquer investigação séria em relação às práticas de qualquer poder que esteja intimamente alinhado com os Estados Unidos.

Em Junho de 2019, Fatou Bensouda apresentou ao pesado sistema de funcionamento do TPI um recurso contra a decisão de não prosseguir com a investigação dos crimes de guerra no Afeganistão. Esta iniciativa foi secundada por várias organizações do país, incluindo a Associação das Famílias das Vítimas Afegãs e a Organização de Ciência Forense do Afeganistão. Em Setembro, a instância que decide sobre a entrada dos processos do TPI aceitou que o recurso possa ser desenvolvido.

O gabinete da procuradora Bensouda pretende agora montar um processo bem sustentado para o seu recurso, o que levará pelo menos seis meses. É provável que o governo de Trump já tenha começado a pressionar instâncias do TPI, o que, segundo membros da equipa da procuradora, poderá ter impacto sobre o recurso, a exemplo do que aconteceu em situações anteriores.

O Reino Unido e o TPI

O Reino Unido é o principal aliado dos Estados Unidos nas guerras contra o Afeganistão e o Iraque. Um recente programa de televisão forneceu provas assustadores da prática de crimes de guerra por tropas britânicas no Iraque. Em 2017, o TPI afirmou que possuía provas “credíveis” de que as forças armadas britânicas cometeram terríveis crimes de guerra – incluindo assassínios, tortura e violações – entre 2003 e 2009. Os relatórios sucederam-se, mas não foi tomada qualquer acção.

Agora, perante as novas revelações apresentadas pelo programa Panorama da BBC, o TPI afirma que provavelmente retomará o caso.

Não existem dúvidas de que, se os casos do Reino Unido forem razoavelmente apreciados tal facto terá repercussões sobre o parceiro sénior destas guerras, os Estados Unidos. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, já foi afirmando que pretende fazer aprovar legislação que, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos, garanta imunidade às tropas britânicas. O Partido Trabalhista, chefiado por Jeremy Corbyn, congratulou-se, por outro lado, com a realização de investigações.

Nenhum soldado deve estar acima da lei. Nem os que enviam os soldados para os campos de batalha. O ex-secretário geral das Nações Unidas, Kofi Annan, qualificou a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque como “ilegal”. No entanto, ninguém, nem mesmo Fatou Bensouda, sugeriu que George W. Bush, o seu gabinete e Tony Blair sejam levados a tribunal.

Se houver intenção de fazer justiça, a acção não deve limitar-se a alguém ao nível de Edward Gallagher; devem ser os seus superiores políticos a responder às questões relacionadas não com este ou aquele crime de guerra, mas sim com todas as guerras e os crimes que elas representam

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