DE COMO O OCIDENTE SE ENGANOU NA SÍRIA
2019-11-15
Tal como aconteceu com Saddam Hussein e Muammar Khaddafi, as grandes potências ocidentais traçaram o mesmo futuro a Bachar al-Assad: o desaparecimento político, ou mesmo físico. Porém, os terroristas "moderados" apoiados pelo Ocidente na guerra contra a Síria transformaram-se numa apocalíptica máquina de morte e, apesar disso, Bachar al-Assad emergiu como vencedor do conflito e tendo ao lado uma grande potência, a Rússia. Mais uma vez o Ocidente tomou os desejos por realidades, leu a narrativa dos acontecimentos ao contrário e saiu humilhado. Só que isso custou milhões de vítimas, uma crise de refugiados e deixou um país e um povo em ruínas.
Robert Fisk, The Independent/O Lado Oculto
Que as guerras podem terminar de maneira diferente das nossas expectativas ou das nossas previsões – isso é um facto há muito estabelecido. A circunstância de “nós” termos ganho a Segunda Guerra Mundial não significou que os norte-americanos ganhariam a guerra do Vietname ou que os franceses derrotariam os seus inimigos na Argélia. No entanto, no momento em que decidimos quem são os bonzinhos e quem são os monstros do mal que devemos abater voltamos a cair em velhos erros.
Os que odiaram, detestaram e demonizaram Saddam, Khaddafi ou Assad tinham a certeza – estavam absolutamente convictos – de que seriam destronados e que os céus azuis da liberdade iriam brilhar sobre as suas terras destruídas. Tudo isso é ingénuo, imaturo, infantil (embora tendo em conta o lixo que vamos consumindo consumir sobre o Brexit não seja, suponho, muito surpreendente).
Ora a morte de Saddam Hussein trouxe o mais inimaginável sofrimento ao Iraque. O mesmo aconteceu com o assassínio de Khaddafi, expondo o lado mais nauseabundo da Líbia. Quanto a Bachar al-Assad, longe de ser derrubado emergiu como o maior vencedor da guerra da Síria. Ainda insistem em que deve ir-se embora. Agora pretendem perseguir criminosos de guerra sírios – e com razão – mas o regime sírio emergiu intacto e vivo acima da maré de sangue e tendo ao lado a superpotência mais fiável que qualquer Estado do Médio Oriente pode ter: o Kremlin.
Narrativa ao contrário
Detesto a palavra “curador”. Toda a gente parece fazer a curadoria de cenários, de negociações políticas ou de portefólios de negócios. Parece que ficámos viciados nesses palavrões horríveis. Pela primeira vez, porém, vou usar a palavra em contexto real: os que seleccionaram a história – a narrativa – da guerra na Síria perceberam tudo ao contrário desde o início.
Bachar ia-se embora, o Exército Livre da Síria, supostamente formado por dezenas de milhares de desertores do Exército sírio e manifestantes desarmados de Darayya, Damasco e Homs, forçaria a família Assad a afastar-se do poder. E, claro, a democracia ao estilo ocidental irromperia e o secularismo – que era, de facto, a base do partido Baas – tornar-se-ia o suporte de um novo e liberal Estado árabe. Deixemos de lado, por enquanto, uma das razões pelas quais existiu apoio ocidental à rebelião: destruir o único aliado árabe do Irão.
Não previram a chegada da al-Qaida, então purificada com a designação de al-Nusra. Não maginaram que o pesadelo do Isis surgisse como um génio dos desertos do Levante. Também não entenderam, nem lhes disseram, como algumas manifestações de cultos islâmicos poderiam consumir a revolução popular em que diziam acreditar.
Ainda hoje estou apenas a começar a aprender como a rebelião “moderada” da Síria se transformou na apocalíptica máquina de matar do Isis. Alguns grupos islâmicos (nem todos, de forma alguma, e não foi uma transição simples) estavam na Síria desde 2012, concretamente em Homs.
Isso não significa que os rebeldes sírios não fossem figuras corajosas e democráticas. Mas as suas características estavam a ser muito exageradas no Ocidente. Enquanto David Cameron fantasiava com os 70 mil moderados do Exército Livre da Síria (FSA) a combater o regime de Assad – nunca mais de sete mil, no máximo – o Exército sírio já conversava com eles, às vezes directamente por telemóvel, para persuadi-los a voltar para as suas unidades das forças armadas governamentais, ou a abandonar uma cidade sem combater ou a trocar os corpos dos soldados governamentais por comida. Os oficiais sírios disseram sempre que preferiam combater contra efectivos do FSA porque fugiam; os da al-Nusra e do Isis não.
A propósito da invasão turca
No entanto, ao relatar agora as circunstâncias da invasão turca no Norte da Síria usa-se uma expressão estranha para designar os aliados da milícia árabe da Turquia. Chamam-lhe “Exército Nacional da Síria” – em oposição ao Exército Árabe Sírio às ordens do governo de Assad. Vincent Durac, professor de política do Médio Oriente em Dublin, escreveu até, há poucos dias, que esses aliados das milícias árabes eram “uma criação da Turquia”.
Isto não faz sentido. Eles são os destroços do Exército Livre da Síria original e agora totalmente desacreditado – as míticas legiões de David Cameron cuja composição misteriosa, recordo-me, já foi explicada aos parlamentares britânicos pelo gloriosamente chamado general Messenger. Muito poucos repórteres (com a excepção honrosa do que estiveram ao serviço do Channel 4 News) explicaram esse facto importante da guerra, embora algumas imagens mostrassem claramente os milicianos pagos pela Turquia brandindo a antiga bandeira verde, branca e preta do Exército Livre da Síria.
Foram esses mesmos ex-membros do FSA que entraram no enclave curdo de Afrin no ano passado e ajudaram os seus companheiros da al-Nusra a saquear casas e empresas curdas. Os turcos chamaram “Operação Ramo de Oliveira” a esse violento acto de ocupação. De maneira ainda mais absurda, a sua mais recente invasão designa-se “Operação Fontes de Paz”.
Houve tempos em que esse facto teria provocado irritação e desprezo. Mas hoje não. Os media tratam amplamente essa ridícula designação como algo que se aproxima do respeito.
O aparecimento das “forças curdas”
Têm sido aplicados os mesmos conceitos com as chamadas Forças Democráticas Sírias (FDS), “com apoio norte-americano”. Como já informei anteriormente, quase todos os membros das FDS são curdos e nunca foram eleitos, escolhidos ou ingressaram democraticamente nas FDS. De facto, não havia nada de democrático nessa milícia e a sua “força” existia enquanto fosse apoiada pelo poder aéreo dos Estados Unidos. No entanto, as Forças Democráticas Sírias mantiveram a sua designação ilesa, amplamente citada pelos media.
Mas quando os turcos invadiram a Síria para expulsar essas forças da fronteira sírio-turca, elas foram repentinamente transformadas em “forças curdas” – que o eram, em grande parte – traídas pelos norte-americanos – o que definitivamente foram.
Uma ironia esquecida, ou simplesmente desconhecida é que, quando os combates começaram em Alepo, em 2012, os curdos ajudaram o Exército Livre da Síria a capturar várias áreas da cidade. Sete anos depois, os dois grupos combatem entre si a partir do momento em que os turcos invadiram a fronteira “livre” do Rojava. Menos anunciado ainda foi o facto de o avanço do Exército Livre da Síria da Turquia para a Síria permitir que milhares de aldeões árabes da Síria regressassem às suas casas, tomadas pelos curdos quando montaram o seu Estado.
A estratégia saudita
Mas a narrativa desta guerra está agora a ser ainda mais distorcida pela ignorância lamentável do novo papel da Arábia Saudita na Síria.
Negar, negar, negar é a política saudita quando a questão é a assistência prestada aos grupos islâmicos anti-Assad na Síria. Mesmo quando encontrei documentos de armas oriundas da Bósnia numa base da al-Nusra em Alepo, assinados por um fabricante de armamento nas imediações de Sarajevo chamado Ifet Krnjic – e até mesmo quando localizei o próprio Krnjic, que explicou como as armas tinham sido enviadas para a Arábia Saudita (até descreveu as autoridades sauditas com quem falou na sua fábrica) – os sauditas negaram os factos.
Hoje, porém, parece inacreditável como os próprios sauditas estão a adoptar uma abordagem totalmente nova em relação à Síria. Os seus aliados dos Emirados Árabes Unidos na guerra do Iémen (outra catástrofe saudita) reabriram a embaixada em Damasco: uma decisão altamente significativa deste Estado do Golfo, embora amplamente ignorada no Ocidente.
Agora, ao que parece, os sauditas estão a pensar em fortalecer a cooperação com a Rússia para financiar a reconstrução da Síria, juntamente com os Emirados e talvez também o Koweit.
Desta maneira, os sauditas tornar-se-iam mais importantes para o regime sírio do que o Irão, que infringiu as sanções, e talvez travassem as relações cada vez mais calorosas – ainda que discretas – do Qatar com Bachar al-Assad. O Qatar, apesar do seu império mundial da Al-Jazeera, pretende expandir o poder sobre territórios físicos reais; e a Síria é um alvo óbvio para a sua generosidade e riqueza. Mas se os sauditas decidirem assumir esse papel oneroso, o reino irá afastar ao mesmo tempo o Irão e o Qatar. Pelo menos parecem acreditar nisso. Os sírios – cuja principal política nestes tempos é esperar, e esperar – naturalmente decidirão como jogar com as ambições dos seus vizinhos.
A derrota do Ocidente
Mas o interesse saudita na Síria não é apenas uma conjectura. O príncipe herdeiro Mohamed bin-Salman comentou à revista Time, em Agosto do ano passado, que “Bachar vai ficar, mas acredito que o interesse de Bachar não é deixar que os iranianos façam o que quiserem”. A Síria e o Bahrein conversam regularmente sobre o Levante do pós-guerra. Os Emirados podem até ser mediadores de negociações entre sauditas e sírios. Os Estados do Golfo admitem agora que foi um erro suspender a participação da Síria na Liga Árabe.
Por outras palavras, a Síria – com incentivo russo – está a retomar, passo-a-passo, o papel que tinha antes de 2011.
Não era isso que o Ocidente imaginava quando os embaixadores dos seus países em Damasco incentivavam os manifestantes nas ruas a manter a sua luta contra o regime; quando, de facto, disseram especificamente aos manifestantes para não conversarem nem negociarem com o governo de Assad.
Mas esses foram dias vividos antes de dois elementos enlouquecidos terem surgido para esmagar todas as suposições ocidentais, semeando medo e desconfiança em todo o Médio Oriente: Donald Trump e o Isis.