O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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TURQUIA AMEAÇA A SÍRIA E ABRE CONFLITO NA NATO

Tropas turcas e norte-americanas têm convivido como ocupantes da Síria, mas parece que a situação mudou

2019-10-07

Edward Barnes, Damasco

O anúncio feito pela Turquia de que está prestes ai lançar uma grande ofensiva militar no norte da Síria, a leste do rio Eufrates, agravou a espiral de instabilidade na região, que passa agora bem pelo interior da NATO e revela até que ponto a guerra desencadeada por sectores da “comunidade internacional” contra o povo sírio e criou e multiplicou artificialmente numerosos focos de conflito.

O primeiro anúncio da ofensiva turca foi feito pelo presidente Erdogan na abertura do ano parlamentar em Ancara. Trata-se, segundo o chefe do regime autoritário da Turquia, de atacar as regiões de influência curdas – de facto “autónomas” – no norte e leste da Síria, de modo a criar uma “zona de segurança” com 30 quilómetros de profundidade. Os objectivos declarados são os de instalar dois milhões de refugiados sírios que se encontram na Turquia e de desmantelar os grupos armados curdos que o governo de Ancara considera “terroristas”.

Acontece que esses grupos curdos – as chamadas Forças de Defesa Sírias (SDF), onde o papel mais importante é desempenhado pelas Unidades Curdas de Protecção (YPG) – fazem parte da estrutura de organizações terroristas montadas pelos Estados Unidos e outras potências da NATO, e também por Israel, para impedir a reunificação administrativa do território sírio.

A Turquia e os Estados Unidos terão acordado a operação no início deste ano, mas Washington tem multiplicado agora sinais e declarações de que não apoia a acção de Ancara e encara com muitas reservas o seu desenvolvimento. O presidente Donald Trump já reagiu num dos seus mais recentes e famosos “tweets” advertindo que “destruirá a economia turca” se os militares às ordens de Erdogan “passarem dos limites”. Habituada a criar guerras através do mundo, a NATO vive há uns meses com uma no seu seio, e logo entre os seus dois países que têm os exércitos mais numerosos da aliança.

Não há elementos que permitam identificar esses “limites”; no entanto, os Estados Unidos retiraram os seus militares de ocupação de dois postos avançados, Ras al Ain e Tell Abiad, uma manobra que terá surpreendido desagradavelmente os grupos curdos. “Fomos apunhalados pelas costas”, lamentam. Trump, por seu lado, sublinha a retirada parcial dizendo que “é ridículo permanecer nesta guerra sem fim”.

Instrumentos de guerra

As organizações curdas foram utilizadas como instrumentos de guerra contra a Síria pelos Estados Unidos e seus aliados depois de os grupos mercenários do sistema al Qaida/Isis terem sido desalojados de zonas estratégicas que mantinham sob ocupação. Para desenvolver a “arma curda”, as potências estrangeiras responsáveis pela agressão chegaram a montar uma limpeza étnica em áreas do norte e leste expulsando pela força populações assírias e cristãs, substituindo-as por “imigrantes” curdos.

O objectivo desta movimentação, de facto de índole militar, foi o de integrar a componente curda na defesa de regiões ainda em mãos terroristas, designadamente Idleb, que estão sob forte ameaça do exército nacional sírio; e, sobretudo, o de criar comunidades “autónomas” curdas de maneira a impedir a reunificação administrativa do território sírio.

Os últimos desenvolvimentos revelam uma intrincada teia de circunstâncias: a disposição de Ancara de realizar a operação contra as zonas curdas sem o apoio dos Estados Unidos, “se necessário”; um aparente abandono norte-americano dos seus instrumentos SDF e YPG, pelo menos nas regiões-alvo da ofensiva; uma viragem dos sectores curdos na direcção de Damasco, manifestando vontade de dialogar com o governo da Síria na busca de uma plataforma de integração nacional; um reposicionamento de Washington, que “não apoia e não quer estar envolvido na ofensiva turca”; e um distanciamento da Rússia, ao afirmar que a ofensiva turca não foi discutida com Moscovo e que “os gestos que podem pôr em risco os esforços para resolver a situação síria devem ser evitados”.

Damasco: sucessão de “ilegalidades”

O governo da Síria considera que a situação revela uma sucessão de ilegalidades, pois estão em causa acções desenvolvidas ou anunciados por potências estrangeiras que são ocupantes do território sírio e que procedem totalmente à revelia de Damasco e contra Damasco.

O YPG curdo, que é uma dissidência das instituições representativas da comunidade curda da Síria fomentada e paga pelos Estados Unidos e Israel, tem mantido alguns contactos com Damasco, embora inconclusivos devido à sua dependência dos ocupantes norte-americanos. Tudo leva a crer que tentarão levar agora mais a sério essa dinâmica negocial com o governo de Assad, pois consideram-se abandonados pela tutela e sob grande ameaça militar da Turquia.

A questão dos refugiados

No seu primeiro anúncio da intenção de realizar a operação militar, o presidente turco deu conta do objectivo de “devolver” à Síria dois milhões dos 3,65 milhões de refugiados sírios que acolheu nos últimos cinco anos.

De acordo com Erdogan, um milhão serão instalados na “zona de segurança” estabelecida na sequência da prometida ofensiva; outro milhão de refugiados serão inseridos em comunidades já existentes – 50 cidades de 30 mil habitantes e 140 aldeias de cinco mil habitantes.

De notar que este projecto terá sido elaborado conjuntamente por Ancara e Washington (que agora se retirou) e manifesta o desejo de pôr e dispôr do território sírio completamente à revelia do governo de Damasco – que prossegue o combate pela libertação total do território nacional.

Ao mesmo tempo que a Turquia projecta enviar refugiados sírios para o seu país de origem tem vindo igualmente a abrir as suas fronteiras para que ingressem no espaço europeu, como se percebe actualmente.

O Conselho de Segurança da ONU não tem ainda agendada qualquer reunião a propósito da projectada ofensiva turca contra a Síria.


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