COMPRAR A GRONELÂNDIA NÃO É UMA PIADA

2019-08-25
Tim Kirby; Strategic Culture; adaptação de O Lado Oculto
Donald Trump é um não-político que deu o salto para a política ocupando logo o cargo mais elevado do planeta. É uma anormalidade que certamente o torna um dirigente imprevisível, capaz de bizarras decisões e estranhas reflexões. Agora Trump decidiu que é tempo de comprar a Gronelândia, assunto que está a fazer manchetes norte-americanas e globais. Mas porque se meteu nisso? O que um território virtualmente despovoado poderá fazer pela América?
É óbvio que a comunicação social pegou imediatamente no tema, mesmo que frequentemente não saiba como fazê-lo. Também há quem entenda que, por ser uma ideia invulgar, deve ser impossível de concretizar. A lógica, neste caso, é de que não sendo habitual comprar e vender os grandes territórios numa base regular, nada seria mais absurdo do que Trump encarar a possibilidade de o fazer. Aparentemente, muitos desses “jornalistas” norte-americanos estão a esquecer-se de que Donald Trump é presidente do país que comprou o Alasca e também grande parte do seu território aos franceses – a Louisiana. Um país habituado a traçar as suas versões de mapas do mundo tem também o próprio mapa delineado na sequência de compras de territórios a grandes potências estrangeiras. Qualquer pessoa que tenha completado a instrução primária nos Estados Unidos deveria saber disso.
Certos meios recorrem também ao argumento de que será impossível comprar a Gronelândia à Dinamarca porque o território já é povoado. Uma alegação que não faz qualquer sentido, uma vez que tanto a Louisiana como o Alasca, embora esparsamente povoados, tinham populações tanto nativas como de origem europeia. Deste modo existe, sim, o procedente de os Estados Unidos comprarem grandes extensões de terras a governos estrangeiros. Teoricamente, é possível fazer transacções deste tipo: não são novidade, apenas não se praticam em grande escala há muitas gerações
Que razões para a ideia?
Portanto, é possível comprar a Gronelândia. Mas por quê incomodar-se com isso. É um território frio, isolado, relativamente distante da América e, aparentemente, com pouco para oferecer economicamente.
Será?
Em primeiro lugar, se olharmos para o mapa deduzimos que áreas da Gronelândia estão tão perto de Moscovo como de alguns membros da NATO, por exemplo Espanha e Portugal.
Não devemos esquecer que as relações reais entre Trump e a NATO têm sofrido alguns sobressaltos desde a sua chegada à Casa Branca; e que os Estados Unidos saíram recentemente do Tratado que proíbe instalar mísseis de médio alcance em terra (INF). O presidente dos Estados Unidos e o complexo militar e industrial que o apoia parecem ver com bons olhos algumas adaptações das estratégias militares. A Gronelândia tem características para ser uma boa “plataforma de lançamento” de outras opções no quadro dos interesses militares norte-americanos livres das restrições do Tratado INF.
Além disso, não é segredo que – embora, de facto, sem razões – Trump acusa alguns sectores europeus de terem comportamentos arrogantes. Pelo que será mais fácil assumir o controlo total sobre um território como a Gronelândia do que impôr a instalação e a ocupação de mais estruturas militares em outros países do continente.
Há, como é evidente, a questão da Dinamarca, cujas primeiras reacções são absolutamente contrárias à ideia de Trump. Porém, no mundo como está hoje, e atendendo ao comportamento da maioria dos dirigentes europeus, é muito difícil dizer “não” aos Estados Unidos durante muito tempo - e pode ser bastante perigoso para a saúde de um país. Se os Estados Unidos ameaçam abertamente a Turquia com sanções pela ousadia (como nação soberana) de comprar tecnologia militar à Rússia, imagine-se o que a Dinamarca poderia vir a sofrer em termos de futuro ao impedir que Washington satisfaça o desejo de ter uma base para a sua força aérea num território que, além disso, já é autónomo.
Petróleo e terras raras
A Gronelândia também oferece a vantagem de ser um território pleno de recursos naturais, alguns dos quais podem competir com produções estratégicas da Rússia e da China.
Segundo cálculos de instituições norte-americanas, a bacia da Gronelândia alberga reservas de hidrocarbonetos da ordem dos 17 mil milhões de barris de petróleo e dos 138 biliões (milhões de milhões) de pés cúbicos de gás natural. Algumas multinacionais operam no terreno desde 2006, designadamente a Statoil, Dong, Husky, Chevron, Exxon Mobil e a escocesa Cairn Energy.
A exploração de hidrocarbonetos na região é uma questão sensível em termos ambientais, embora as empresas em acção na Gronelândia tenham encontrado boas parcerias no governo autónomo de Nuuk (a capital da Gronelândia), desejoso de poder tornar-se economicamente autónomo da Dinamarca e da União Europeia. O território recebe vastos subsídios da Dinamarca e compensações de pesca da União Europeia – organização a que a sua população decidiu não pertencer.
O governo da Gronelândia é representativo da população inuit, maioritária no território e cujas comunidades se estendem até à Rússia, Canadá e Alasca. O governo inuit de Nuuk, porém, tem posições diferentes, em termos ambientalistas, das defendidas por outras comunidades inuit em outros países, precisamente pela procura de autonomia económica em relação a Copenhaga e Bruxelas.
A Gronelândia tem igualmente importantes reservas minerais interligadas com indústrias dominantes no presente e no futuro, tais como ferro, níquel, platina e metais terras raras. A China tem praticamente o monopólio mundial destes últimos, indispensáveis nas indústrias de guerra, pelo que Washington veria com bons olhos encontrar alternativas, principalmente numa altura em que Pequim pode fechar a torneira.
É claro que as pressões ambientalistas sobre a Gronelândia são muitas, assunto que para Donald Trump não representará qualquer entrave à compra. Aliás, o Árctico é uma das zonas económicas de futuro em termos de matérias-primas e, através da Gronelândia, os Estados Unidos teriam mais uma plataforma para essa batalha.
Acontece que o degelo nas zonas nórdicas, incluindo das camadas de permafrost, é mais um alibi para os interesses envolvidos na exploração económica a qualquer custo, incluindo perturbar o equilíbrio climático.
Acresce ainda que os Estados Unidos têm tido conhecimento, com desagrado, das iniciativas da União Europeia e, sobretudo, da China, para o estabelecimento de parcerias com o governo autónomo da Gronelândia envolvendo as potencialidades económicas do território.
Trump é, sobretudo, um homem de negócios. Para ele tem mais lógica pegar num território de raiz, com uma situação estratégica e um potencial económico interessantes, do que continuar a fazer pressões sobre potências estrangeiras que às vezes têm a ousadia de não dizer sempre que sim aos Estados Unidos.
Existe uma população
Alguns argumentos sobre a hipotética transacção valorizam o facto de a ilha da Gronelândia ter uma população de 50 mil pessoas, que certamente não deixariam de protestar contra o facto de serem “compradas”. Haveria, sem dúvida, protestos em massa rejeitando qualquer negócio.
E daí? Que podem essas pessoas fazer? As suas marchas e protestos de nada valerão.
Os media mainstream, certamente, não darão cobertura a esses levantamentos e só Deus poderá ouvir as reclamações dos habitantes da Gronelândia. Meios de comunicação russos poderão até enviar repórteres, que farão eco da situação, o que de pouco valerá: a “estratégia de comunicação” da União Europeia e da Casa Branca sentenciará que as informações não passam de propaganda do Kremlin.
A Gronelândia é um território pobre. Investimentos da ordem dos 500 milhões de dólares – uns simples trocos para Washington – poderiam criar estímulos económicos, de infraestruturas e serviços susceptíveis de alterar a situação dos sectores mais carenciados e dominantes da população da ilha.
Em suma, da compra da Gronelândia Donald Trump poderia extrair:
A criação de uma plataforma militar de elevado peso estratégico;
Recursos naturais que iriam competir com alguns que são estrategicamente importantes para a Rússia e para a China;
Condições para bloquear qualquer outra (alegada) tentativa chinesa para desenvolver o território;
Uma assimilação fácil da pequena população.
De que maneira poderá a Dinamarca passar à prática a animosidade geral contra os desejos de Trump, inicialmente qualificados como “brincadeira” – que, de facto, não é? Não faltam na classe política dinamarquesa as personalidades, forças e instituições intimamente sintonizadas com os interesses norte-americanos. A título de exemplo, o actual secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, foi primeiro-ministro dinamarquês. E Copenhaga é sede de instituições que são suportes dos meios políticos e económicos que disseminam as teses, as influências e a propaganda do neoliberalismo global.
Em relação à Dinamarca, há, pois, que esperar para ver. A estratégia mais óbvia, no caso de pretender manter o status quo, será a de ir protelando o assunto até que chegue um presidente norte-americano que o deixe cair.
O certo é que Trump lançou um balão de ensaio. O que não é uma brincadeira, e muito menos inocente. “Tornar a América grande de novo” é o slogan do actual presidente dos Estados Unidos. E aquelas 50 estrelas perfeitamente agrupadas na bandeira do seu país já estão até a tornar-se aborrecidas.