A TRAGÉDIA DA ÁGUA EM EL SALVADOR: UM CASO EXEMPLAR

2019-08-03
Jorge Fonseca de Almeida*, especial para O Lado Oculto
A sistemática e intencional obstrução da direita à regulamentação e controlo estatal está a esgotar rapidamente as reservas de água de El Salvador, levando à emigração forçada da população rumo aos Estados Unidos.
El Salvador em mudança política
El Salvador é um pequeno país da América Central com uma população de mais de seis milhões de habitantes que fazem dele, com 300 habitantes por Km2, um dos mais densamente povoados da região. Para comparação refira-se que Portugal, com 115 habitantes por Km2, tem uma densidade populacional de cerca de metade.
O actual presidente do país, Nayib Bukele, um jovem empresário candidato pelo partido de direita GANA (Gran Alianza por la Unidad Nacional), enfrenta uma crise já está instalada. A crise da água. Recentemente eleito - as eleições realizaram em Fevereiro de 2019 - Bukele derrotou os candidatos dos partidos tradicionais: a ARENA de extrema-direita e a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN).
Esta última apresentou como candidato Hugo Martinez, que recolheu apenas 14% dos votos. Note-se que os dois presidentes anteriores, Salvador Sánchez Cerén e Mauricio Funes, pertenciam ambos à FMLN. A queda deste partido é, pois, aparatosa.
Nayib Bukele, de ascendência palestiniana, tem vindo a utilizar o Twitter para dar a conhecer as suas decisões. Por exemplo, demitiu todos os familiares do anterior presidente que ocupavam cargos no aparelho de Estado. Um combate ao nepotismo da FMLN que lhe granjeou forte apoio popular.
Apesar de tudo, o Governo da FMLN obteve êxitos na área do desenvolvimento económico e na redução significativa das taxas de pobreza extrema – que desceram de 15% para 10% de 2007 para 2016, isto é uma redução de quase 40%.
A FMLN conseguiu também aumentar consideravelmente os rendimentos dos mais pobres, colocando El Salvador como o segundo país mais igualitário da América Latina.
Mas não conseguiu, devido à obstrução da direita, racionalizar o sector da água, que se está a revelar o factor chave no desenvolvimento do país e do bem-estar da sua população.
A Questão da Água
A falta de água que as populações enfrentam tem origem em duas grandes causas: a desflorestação e a poluição das águas superficiais.
A desflorestação tem sido enorme. Extensas áreas de floresta estão a ser substituídas por uma agricultura intensiva baseada na monocultura da cana-de-açúcar e do café. Uma lavoura que requer água em grandes quantidades e que, com o uso de fertilizantes e adubos, polui as águas superficiais e degrada os solos tornando-os impermeáveis, diminuindo a capacidade de retenção das águas pluviais.
De acordo com o Banco Mundial, El Salvador perdeu, entre 1990 e 2015, 30% da sua área florestal. Uma tragédia.
Zonas que ganharam e perderam árvores entre 1990 e 2015
De acordo com dados públicos, os aquíferos de El Salvador diminuíram quatro metros nos últimos anos, deixando o país a beira da falta de água. A produção actual atinge já os mínimos aceitáveis. Estudos apontam para que 90% das águas superficiais estejam poluídas.
Nas zonas rurais são cada vez mais as pessoas sem acesso a água potável.
Para piorar a situação, o país tem enfrentado nos últimos anos algumas das piores secas registadas na América Central. Em 2016 o governo declarou o estado de emergência devido à seca.
No meio desta catástrofe o país parece incapaz de tomar as medidas necessárias para combater a escassez. No centro do problema estão os interesses económicos das empresas que desejam a privatização das águas. Os políticos da direita mais conservadora, a Arena, o partido com mais deputados no Parlamento, representante destes interesses, tem sistematicamente bloqueado as iniciativas do anterior presidente neste domínio e defendido que o mercado é o melhor mecanismo para resolver o problema da falta de água.
Campo de golfe El Encanto em El Salvador
A ausência de regulamentação tem vindo a permitir que as empresas de águas engarrafadas, os produtores de cana-de-açúcar e até os donos de campos de golfe usem a água e criem escassez nas comunidades mais pobres.
O novo governo de Nayib Bukele propõe, como primeiro passo para uma privatização futura, entregar a gestão da água a empresas privadas, o que tem suscitado viva oposição das populações, nomeadamente da Alianza contra la Privatización del Agua, que agrupa mais de 80 organizações, e da FMLN.
Enquanto, para gáudio dos interesses económicos privados, o governo hesita, gangues criminosos começam a controlar as fontes de águas das comunidades pobres.
Consequências
A principal consequência da incapacidade do governo salvadorenho de gerir adequadamente as suas reservas de água é a migração massiva da população rumo aos Estados Unidos. Existem quase três milhões de imigrantes do Triangulo Norte (Honduras, El Salvador e Guatemala) nos Estados Unidos, dos quais 700 mil salvadorenhos (mais de 10% da população residente).
De acordo com o Banco Mundial, as remessas dos emigrantes representam o valor impressionante de 5400 mil milhões de dólares, ou seja, 21,3% do Produto Interno Bruto. Com tal magnitude, qualquer oscilação nas remessas pode significar uma grave crise económica no país. Não há, pois, um grande incentivo interno de criar condições para que a torrente migratória cesse.
A falta de água está também a afectar a produção de energia hidroeléctrica, obrigando o país a importar mais petróleo, ou seja a trocar uma energia limpa por outra mais poluente.
Conclusão
Nos próximos anos, se nada for feito para garantir o regular abastecimento de água com equidade a toda a população, podemos assistir a uma migração massiva de salvadorenhos rumo aos países vizinhos.
Os actuais níveis de emigração com origem Triangulo Norte já tem consequências nefastas nos Estados Unidos - eleição de Donald Trump, construção prometida de um muro de separação com a América Latina, perseguição aos imigrantes nos Estados Unidos, etc.
Uma migração de ainda maiores proporções pode aumentar a instabilidade política na região e dar origem a conflitos civis armados pelo acesso à água.
O recém-eleito presidente salvadorenho enfrenta o duplo desafio de prosseguir as políticas de redução da pobreza seguidas pela FMLN e, simultaneamente, resolver de forma equilibrada a redistribuição da água no seu país. A decisão de trazer os privados para essa gestão é já um passo na direcção errada.
*Economista, MBA