ITÁLIA DE RASTOS PERANTE WASHINGTON

2019-07-31
O primeiro ministro de Itália definiu a “aliança privilegiada” com os Estados Unidos como o pilar da política externa do país e o garante da sua “soberania democrática”.
Manlio Dinucci, Roma; Il Manifesto/O Lado Oculto
Apesar de a oposição atacar constantemente o governo italiano e de existirem divergências no interior do executivo, nenhuma voz crítica se ouviu através do arco parlamentar quando o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, expôs em 26 de Julho, perante a Conferência dos Embaixadores, as linhas que definem a política externa e que resultam de um vasto consenso multipartidário.
Em primeiro lugar, Conte definiu o pilar de orientação do lugar da Itália no mundo: “As nossas relações com os Estados Unidos continuam a ser qualitativamente diferentes das que temos com as outras potências, porque se fundamentam nos valores, nos princípios partilhados que são a própria base da República e parte integrante da nossa Constituição: a soberania democrática, a liberdade e igualdade dos cidadãos, a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana”. Deste modo, o primeiro-ministro Conte não lembra apenas que os Estados Unidos “são o nosso aliado privilegiado”; enuncia mesmo um princípio que guia o país: a Itália considera os Estados Unidos como modelo de sociedade democrática.
Quanto “à liberdade e igualdade dos cidadãos” basta lembrar que os norte-americanos são ainda hoje recenseados com base na “raça” – brancos (divididos em não-hispânicos e hispânicos), negros, índios americanos, asiáticos, indígenas hawaianos – e que as condições de vida dos negros e dos hispânicos (latino-americanos pertencentes a todas as “raças”) são de longe as piores.
Quanto à “defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana”, basta lembrar que, nos Estados Unidos, mais de 43 milhões de cidadãos (14%) vivem na pobreza e cerca de 30 milhões não têm assistência na sanitária, enquanto a de muitos outros é insuficiente (por exemplo, para pagar uma longa quimioterapia contra um tumor). Ainda quanto à “defesa dos direitos da pessoa humana” deve ainda recordar-se o facto de milhares de negros desarmados serem assassinados impunemente por polícias brancos.
Soberania democrática ma non troppo
Quanto à “soberania democrática”, lembremos a série de guerras e golpes de Estado desencadeados pelos Estados Unidos, de 1945 aos nossos dias, em mais de 30 países asiáticos, africanos, europeus e latino-americanos, provocando 20 a 30 milhões de mortos e centenas de milhões de feridos (ver a investigação de James Lucas apresentada pelo professor Michel Chossudovsky no website Global Research).
Eis, portanto, os “valores partilhados” nos quais a Itália fundamente a sua “relação qualitativamente diferente” com os Estados Unidos. E para mostrar o quanto esta é frutuosa, Conte assegura: “Sempre encontrei no presidente Trump um interlocutor atento aos legítimos interesses italianos”. Interesses que Washington considera como “legítimos” desde que a Itália continue em posição gregária na NATO dominada pelos Estados Unidos, os acompanhe de guerra em guerra, aumente as suas despesas militares, ponha o seu território à disposição das forças e bases norte-americanas, forças nucleares incluídas.
Conte tenta fazer crer que o seu governo, habitualmente definido como “soberanista”, tem um amplo espaço de autonomia de “diálogo com a Rússia” com base na dupla abordagem da NATO (diplomática e militar): abordagem que, na realidade, é uma via única para um confronto militar cada vez mais perigoso.
A propósito disto – segundo o jornal La Stampa – o embaixador norte-americano em Roma, Lewis Eisenberg, telefonou ao vice-presidente do governo Luigi di Maio (considerado o “mais fiável” por Washington), pedindo um esclarecimento sobre as relações com Moscovo, designadamente do outro vice-presidente, Matteo Salvini (cuja visita a Washington, apesar dos seus esforços, teve “um desfecho decepcionante”).
Não se sabe que se o governo Conte conseguirá passar no exame. Mas sabe-se que se perpetua a tradição segundo a qual, em Itália, o governo deve ter sempre a aprovação de Washington, percebendo-se assim o teor da “soberania democrática” italiana.