UNIÃO EUROPEIA, 7 – MERCOSUL, 1
2019-07-02
Misturem-se o renitente colonialismo europeu com a falta de dignidade e de espírito soberano dos governos do Brasil e da Argentina; juntem-se muita cegueira neoliberal e a necessidade de consolidar o golpismo; chame-se negociação à rendição e teremos o Acordo Comercial entre a União Europeia e o Mercosul cuja conclusão foi agora anunciada – e cujo resultado está ao nível da goleada da Alemanha ao Brasil por 7-1 em 2014. O que se arrastou durante quase 20 anos de negociações decidiu-se agora num ápice e sob uma nuvem de secretismo. Deixamos uma perspectiva brasileira sobre o acordo traçada por alguém que conhece profundamente a história deste processo.
Marcelo Zero*, Brasília; América Latina em Movimento/O Lado Oculto
A apresentação da conclusão do acordo entre a União Europeia e o Mercosul como um “grande avanço” é, provavelmente, a maior fake news do governo Bolsonaro.
O governo e a imprensa venal falam da “grande conquista” de um acordo que demorou 20 anos a ser concluído.
Pudera. Na época em que tínhamos um governo que defendia o Brasil e o Mercosul, os nossos negociadores preferiam não fechar um acordo do que fechar um acordo ruim, lesivo da nossa soberania.
Deve-se entender que em toda negociação comercial os países participantes têm interesses ofensivos, normalmente vinculados aos seus sectores produtivos mais competitivos, e interesses defensivos, relacionados com os seus sectores económicos mais frágeis e que precisam de protecção para se desenvolver. A partir da definição destes interesses, monta-se a estratégia de negociação, que usualmente procura maximizar os ganhos dos interesses ofensivos, minimizando, ao mesmo tempo, as perdas nos interesses defensivos.
Os interesses da União Europeia
No caso específico das negociações Mercosul-União Europeia, os interesses ofensivos do bloco económico europeu estavam concentrados em produtos industrializados (conhecidos, no jargão da Organização Mundial de Comércio, OMC, por NAMA-non agricultural market acess), serviços (especialmente serviços tecnologicamente mais sofisticados, como telecomunicações, serviços financeiros, serviços de transporte-navegação de cabotagem, serviços ambientais e de consultoria etc.), propriedade intelectual (para impor regras mais rígidas do que as já acordadas na OMC- o chamado TRIPS plus), compras governamentais (com o intuito de abrir esse importante mercado às empresas europeias) e investimentos (com o objectivo de proteger investimentos europeus no Mercosul mediante regras que criam privilégios para o investidor).
No que tange aos interesses defensivos da UE, eles estavam concentrados essencialmente na agricultura. A União Europeia, pressionada principalmente pela França, queria preservar, sem mudanças significativas, a sua política agrícola e de segurança alimentar, baseada não apenas em barreiras aduaneiras e não-aduaneiras às importações, mas também numa montanha de subsídios à agricultura que tornam os produtos agrícolas europeus artificialmente competitivos. Somente a Política Agrícola Comum (PAC) disponibiliza, todos os anos, cerca de 60 mil milhões de euros para os agricultores europeus, em subsídios directos, consumindo 40% do orçamento comunitário. Isso sem falar dos apoios indirectos, como o crédito facilitado e os subsídios concedidos em âmbito nacional.
A UE também tinha interesses defensivos em matéria sanitária e fitossanitária (de modo a poder manter barreiras técnicas a produtos agrícolas) e antidumping (de forma a impor barreiras contra produtos industrializados com preços muito baixos).
Os interesses do Mercosul
O Mercosul, sob a liderança do Brasil, tinha, por sua vez, naquela época do início das negociações, interesses ofensivos claros em agricultura, já que seus membros são muito competitivos nessa área, em certos sectores de serviços (no chamado modo 4-transfronteiriço, que são os serviços prestados com exportação de mão-de-obra), em alguns produtos industrializados (aço, alimentos processados, etanol, têxteis, aviões, etc.), em antidumping (queríamos regras mais claras e rigorosas para a sua aplicação) e medidas sanitárias e fitossanitárias (idem).
Em relação aos interesses defensivos do Mercosul eles estavam concentrados em sectores estratégicos dos serviços (serviços financeiros, por exemplo, essenciais para não aprofundar a vulnerabilidade da economia), certos sectores industriais (informática, automóveis, química e petroquímica etc.), propriedade intelectual (de modo a não prejudicar o nosso desenvolvimento tecnológico e a não comprometer certas políticas públicas, como a do combate à SIDA, por exemplo), compras governamentais (já que elas são importantes para estimular a produção nacional - no caso das compras da União -, regional - no caso das compras dos Estados -, e local - no caso das compras municipais), e investimentos (para não criar privilégios para o investidor estrangeiro e comprometer políticas de desenvolvimento).
Quase 20 anos sem acordo
As negociações Mercosul-UE começaram oficialmente em 1999, mas até agora não tinha sido possível chegar-se a um acordo abrangente e significativo. Elas ficaram paralisadas entre 2004 e 2010, uma vez que a distância entre as propostas era muito grande. Entretanto, em 2010 foram oficialmente retomadas por pressão da União Europeia, a qual, na época, estava a ser muito afectada pela recessão e buscava compensar a diminuição de seu mercado interno com o aumento de exportações.
O Mercosul, liderado pelo Brasil, fez, naqueles tempos, ofertas racionais em compras governamentais (abrindo a possibilidade de preferência para empresas europeias, preservadas as políticas de estímulo à produção nacional), NAMA (com concessões em cerca de 90% da pauta importadora, preservando, no entanto, sectores considerados estratégicos) e mesmo em certos sectores de serviços (como seguro bancário, ligações internacionais, serviços profissionais especializados, etc.). Porém, a União Europeia queria muito mais.
A União Europeia, por sua vez, admitiu aumentar quotas de importação para certos produtos, como carnes e etanol. No entanto, a União Europeia negou-se a fazer concessões significativas naqueles sectores que mais interessam ao Mercosul e ao Brasil, como barreiras não-tarifárias a produtos agrícolas e industriais e, acima de tudo, subsídios à agricultura, os quais não apenas impedem a penetração dos nossos produtos agrícolas no mercado europeu como dificultam também a venda desses produtos noutros mercados, já que a União Europeia é grande exportadora de commodities agrícolas subsidiadas.
A estratégia da União Europeia é de só negociar esses assuntos (chamados “temas sistémicos”, em jargão técnico) na OMC. Contudo, as ofertas que a UE fez na OMC sobre subsídios agrícolas foram pífias, e decepcionaram os países em desenvolvimento.
Era essa atitude da UE que vinha impedindo a consecução de um acordo abrangente, no âmbito das negociações com o Mercosul. Com efeito, sem concessões significativas em subsídios agrícolas e barreiras não-tarifárias por parte da UE, um acordo com o Mercosul poderia resultar em sérias assimetrias e desequilíbrios para os nossos países.
Havia precedentes desastrosos
Deve-se ter em mente o que aconteceu com o México, que firmou um acordo de livre comércio com a UE em 1999. As assimetrias consolidadas nesse acordo acabaram por duplicar o défice comercial que o México tinha com a União Europeia. Coisa semelhante aconteceu com Peru, Colômbia, Equador, que também passaram a ter largos défices na sua relação comercial com a UE, após entrarem em vigor acordos de livre comércio. Os precedentes, portanto, são desastrosos.
Observe-se que, entre 2013-2017, o Brasil acumulou um défice comercial com a UE de 5200 milhões de dólares. Nesse período, só tivemos superávits em 2016 e 2017. Contudo, esses superávits recentes não foram ocasionados pelo aumento de nossas exportações para o bloco europeu, já que elas caíram de 47800 milhões de dólares, em 2013, para 34900 milhões de dólares, em 2017. Na realidade, esses superávits recentes foram causados pela queda brutal das nossas importações, devido à forte recessão brasileira. Com efeito, as nossas importações da UE desabaram de 50700 milhões de dólares, em 2013, para meros 32 mil milhões, em 2017. Assim sendo, a assinatura de um acordo assimétrico poderá ampliar o desequilíbrio estrutural entre economias que estão num estágio diferente do seu nível de desenvolvimento.
Tendência para a cedência
Pois bem, nos últimos tempos vinha crescendo o receio de que o Brasil e o Mercosul acabariam por concordar com um tratado comercial desequilibrado.
Isto por três razões. A primeira relaciona-se com a crescente desnacionalização da nossa indústria. Hoje, os sectores mais poderosos da indústria instalada no Brasil, como a automobilística, por exemplo, já são bastante internacionalizados. Ao contrário do que acontecia no passado, esses sectores são agora favoráveis a um acordo que permita a livre importação de insumos industrializados que diminuam os seus custos, como motores, componentes eletrónicos etc. Por esse motivo, a FIESP (federação patronal industrial do Estado de São Paulo) mudou de posição relativamente ao acordo com a UE e vinha defendendo regras comerciais mais liberais para a indústria.
Já segunda razão dizia respeito ao factor político e ideológico. O golpe e o governo Bolsonaro são neoliberais até a medula e acreditam que a adesão apressada do Brasil a acordos comerciais amplos e de “nova geração” poderá fazer com que o país retome seu crescimento, compensando a contracção recente do seu mercado interno. Trata-se, do nosso ponto de vista, de uma aposta ingénua e suicida que não tem qualquer base empírica. A bem da verdade, o que a história económica mostra é que todos os grandes países praticaram políticas proteccionistas, principalmente para proteger a sua indústria nascente. Tais políticas só foram parcialmente flexibilizadas quando esses países adquiriram níveis muito altos de competitividade internacional.
Mesmo hoje, os países desenvolvidos e industrializados continuam a proteger seus sectores industriais mais frágeis e sensíveis. Isto sem falar do seu sector agrícola fortemente subsidiado.
Considere-se que, nos últimos tempos, ocorreram mudanças consideráveis nas políticas comerciais de vários países, que passaram a ser consideravelmente mais proteccionistas. É o caso óbvio dos EUA, sob a administração Trump. Recentemente, este governo anunciou sobretaxas ao aço (25%) e ao alumínio (10%), à revelia do que dispõe a OMC, o que prejudicará muito a siderurgia brasileira, que exporta 30% de sua produção para os Estados Unidos. Na Europa ocorre o mesmo fenómeno. A saída da Grã-Bretanha da UE (Brexit) insere-se na mesma tendência de nacionalismo e proteccionismo.
Por conseguinte, esta aposta ingénua do governo Bolsonaro numa liberalização comercial acrítica e unilateral coloca o Brasil na contramão da tendência mundial.
Quando se abdica da soberania…
A terceira razão diz respeito ao facto inquietante de que as negociações, consolidado o golpe no Brasil, se aceleraram e passaram a ser realizadas sob um manto de inexplicável sigilo. Nada era divulgado. Surgiam apenas, aqui e ali, especulações sobre o que vem sendo efectivamente negociado. Tal facto impede análises precisas sobre as possíveis consequências do acordo concluído para a estrutura produtiva nacional e os empregos dos brasileiros. Mas, face às novas políticas internas neoliberais e à nova política externa “omissa e submissa”, teme-se que este acordo com a UE possa ser usado para blindar as escolhas políticas do golpe. Com efeito, não há maneira mais eficiente de blindar escolhas políticas do que plasmá-las em tratados internacionais.
Neste contexto internacional e nacional, e sob estas condições de negociações, a possibilidade de um bom acordo, simétrico e que protegesse a nossa indústria gravemente combalida parecia ser muito remota. A revisão significativa da Política Agrícola Comum (PAC) da UE, em particular, parecia estar fora do âmbito da negociação.
De modo significativo, os europeus estavam, até há pouco tempo, exultantes. Falavam da “oferta generosa” do Mercosul, sob a batuta de Bolsonaro e Macri, dois governos acossados pela recessão, a fragilidade política e a submissão ideológica. Os europeus não mudaram de posição, nós sim.
Não temos dúvidas de que a acordo firmado é assimétrico, desequilibrado, lesivo dos interesses nacionais e compromete, em definitivo, a capacidade do Estado nacional do Brasil de implementar políticas de desenvolvimento, de industrialização, de ciência e tecnologia, etc.
Caberá ao Congresso, que terá de aprovar o acordo, defender o Brasil.
Não se enganem, não há nada a comemorar.
Apanhámos 7 a 1. Ou mais.
*Sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do Partido dos Trabalhadores no Senado do Brasil