O CENSO VICIADO EM PORTUGAL
2019-06-22
Jorge Fonseca de Almeida*, especial para O Lado Oculto
O Instituto Nacional de Estatística (INE) contrariando a opinião do Grupo de Trabalho formado para o efeito e numa decisão inédita anunciou, pela voz do seu Presidente Francisco Lima, que ao contrário do seria normal não vai recolher no censo de 2021 dados étnico-raciais que há muito vêm sido solicitados pelo movimento antirracista.
Em Abril, o Grupo de Trabalho recomendou a inclusão da recolha de dados étnico-raciais, a exemplo do que é feito num conjunto alargado de países ocidentais, no sentido de aferir a composição do país e, mais importante, de identificar e quantificar o tratamento desigual dos vários grupos na nossa sociedade em termos de habitação, rendimentos, acesso à educação, acesso à saúde, acesso ao trabalho, representação política.
Estes dados permitiriam desenhar um conjunto de políticas e estratégias de combate ao racismo institucional, à discriminação e à segregação.
As razões avançadas pelos Presidente do INE para a não inclusão foram as seguintes:
i) Risco de institucionalizar as categorias étnico-raciais,
ii) Complexidade do tema requereria mais tempo,
iii) Incerteza no resultado por a questão ser facultativa.
Vejamos se estes argumentos são sólidos.
Incerteza associada ao carácter facultativo
Existem outras perguntas facultativas no censo, nomeadamente uma sobre a filiação religiosa. Uma pergunta melindrosa a que, contudo, muitas pessoas respondem – nomeadamente as que são membros de minorias religiosas como a judaica e a muçulmana.
Nunca o INE pôs em causa os resultados obtidos por esta pergunta facultativa, nem a retirou do censo. Pelo contrário, o INE divulga esses resultados com plena confiança. Este facto mostra que o carácter facultativo não gera automaticamente incerteza quanto à fiabilidade dos resultados.
Nos censos de vários países as perguntas sobre etnicidade e raça são facultativas. Vejamos: na Bulgária diz-se “perguntas de resposta voluntária”; na Hungria o impresso do censo informa “Responder às próximas perguntas não é obrigatório”; no da Roménia lê-se “cada pessoa é livre de expressar a sua opinião sem constrangimentos”; no da Sérvia “a pessoa não é obrigada a declarar”. Não se trata de países mais desenvolvidos tecnicamente que Portugal em termos de recolha estatística para um censo.
Poderíamos citar muitos outros exemplos. Em nenhum destes países se levantou a questão da fiabilidade dos resultados. Pelo contrário, eles são muito importantes para tomada de decisão.
Na verdade, perguntas controversas ou facultativas devem ser testadas antes de incluídas para verificar a robustez dos resultados obtidos. Sem tal verificação não é cientificamente correcto emitir uma opinião sobre a certeza ou incerteza dos dados.
Assim, a afirmação do Presidente do INE deve ser lida não como uma constatação técnica mas antes como uma simples opinião política.
Complexidade do tema
No momento em que escrevemos, os EUA debatem a introdução de uma pergunta no censo de 2020 deste país sobre se o inquirido tem ou não nacionalidade norte-americana. Sendo muitos imigrantes latinos ilegais, muitos vêem essa pergunta como uma forma de afastar milhares de imigrantes latinos de responder ao censo e, dessa maneira, reduzir estatisticamente o peso da população latina. A ser assim seria desastroso para o censo, que daria resultados errados.
Existem vibrantes campanhas da direita para incluir a pergunta; e da esquerda, aliada às comunidades latinas e imigrantes, para não a incluir.
Os latinos são a segunda maior comunidade norte-americana, representando já mais de um sexto do total da população.
Sendo controversa, a pergunta está a ser analisada pelo Supremo Tribunal, que decidirá se pode ou não ser incluída no Censo. O Departamento de Estatísticas, contudo, não se queixou de ser uma pergunta controversa e está já a testar a melhor forma de a incluir. Note-se que o Supremo Tribunal ainda não se pronunciou sobre o tema e que o censo norte-americano é em 2020, um ano antes do português.
Assim, a resposta do Presidente o INE mostra incompetência e falta de prudência. Sabendo que o Grupo de Trabalho poderia vir a aprovar a pergunta, não se preparou. Confrontado desde Abril com a luz verde do Grupo de Trabalho queixa-se, agora, de falta de tempo. O caso norte-americano mostra que o tempo existe; a competência para o aproveitar é que parece que escasseia.
Esperava-se que o Presidente do INE, em face disto, terminasse demitindo-se e abrindo lugar a outro mais prudente e competente. Pelo contrário, aparentemente, tal ideia não lhe passou pela cabeça.
Risco de institucionalizar as categorias étnico-raciais
Pergunta sobre raça no último censo norte-americano
Este seria um risco absurdo de se correr em troca da recolha de informação estatística. Acontece, porém, que esse risco não existe, pelo simples facto que a institucionalização do racismo sobre os grupos étnico-raciais já existe.
Qualquer observador atento verificará que a habitação está fortemente segregada, com extensos bairros habitados maioritariamente por negros e ciganos; e outros, normalmente mais abastados, por brancos. Que nas Universidades não existem, apenas algumas ínfimas excepções que confirmam a regra, alunos portugueses oriundos das minorias negra e cigana. Que o acesso à saúde é muito diverso e que a comunidade cigana tem uma esperança de vida muito inferior à média nacional, que os negros para as mesmas habilitações são mais mal pagos que os brancos, etc, etc.
O risco não só não existe como a inclusão destas perguntas permitiria diminui-lo no futuro, uma vez que, identificados com rigor os problemas, mais depressa e mais eficazmente se pode avançar na sua resolução.
Pergunta sobre raça no último censo do Reino Unido
Pergunta do último Censo Irlandês
Note-se que Irish Traveller equivale à categoria Cigano.
Pergunta traduzida do Censo Húngaro
Aqui deixámos várias perguntas colocadas em vários censos europeus e americanos para que se perceba que não existe um tabu sobre esta pergunta e que ela é vista como útil em países com diversidade étnico-racial.
Longe de contribuir para a institucionalização dessas categorias, o que há que reconhecer é a sua existência e contribuir para que não sejam fonte de discriminação e segregação.
Censo Viciado
Portugal é uma sociedade étnica e racialmente diversificada. Não o querer aferir e reconhecer é viciar o censo.
Portugal é um país estrutural e institucionalmente racista, onde as desigualdades entre grupos são gritantes, onde a discriminação é visível e a segregação espacial patente. Não querer recolher a informação básica e fundamental que poderia ajudar a ultrapassar este terrível problema é viciar o censo e agir de forma politicamente motivada.
Um censo viciado, em que se não tem a coragem de colocar as perguntas certas e essenciais, é um censo parcialmente inútil, em que a informação é incompleta e traça um quadro enviesado da sociedade.
Portugal não deve agir como a avestruz, que perante os problemas enterra a cabeça na areia, mas antes como um confiante agente social que quer conhecer a realidade para a mudar.
Como diz o povo com razão “o pior cego é o que não quer ver”. Não precisamos deste tipo de pessoas à frente do INE.
*Economista, MBA