PENCE SUGERIU A MERKEL INVADIR O MAR DE AZOV
2019-03-10
José Goulão; com Lourdes Hubermann, Berlim; e Castro Gomez, Moscovo
O vice-presidente dos Estados Unidos, Michael Pence, pediu em 16 de Fevereiro à chanceler alemã para enviar navios de guerra para o Mar de Azov com o objectivo de provocar um conflito com a Rússia. Angela Merkel rejeitou depois de consultar o chefe do regime ucraniano, que considerou a manobra “insuficiente” para provocar Putin.
De acordo com a agência norte-americana Bloomberg, insuspeita de nutrir qualquer simpatia por Moscovo, o pedido foi feito numa reunião entre o vice-presidente de Trump e a chanceler alemã realizada no hotel Bayerischer Hof, em Munique, à margem da Conferência de Segurança que nesses dias decorreu na capital bávara. O episódio é confirmado por três testemunhas presenciais que solicitaram o anonimato à agência que o divulgou. Os desdobramentos da manobra, que envolveram ainda a França e a Ucrânia, são confirmados por outras fontes anónimas citadas pela agência. Um porta-voz da chanceler alemã recusou-se a comentar o sucedido.
Segundo o relato dos acontecimentos efectuado pela agência Bloomberg, foi Michael Pence quem tomou a iniciativa ao solicitar a Merkel o envio de navios de guerra para o Estreito de Kerch, entre os mares Negro e de Azov, que em 25 de Novembro foi cenário de uma provocação montada pelo regime fascista ucraniano contra a Rússia. A operação tinha como objectivo desencadear um confronto armado entre a Rússia e a Ucrânia, país que seria depois auxiliado por meios militares de países da NATO
Pence afirmou que a operação teria agora como objectivo demonstrar que as forças militares da NATO têm todo o direito de navegar no Mar de Azov, mesmo depois de a Península da Crimeia ter regressado à soberania russa. O Estreito de Kerch separa a Crimeia do território continental russo.
Os motivos da recusa de Merkel
A rejeição de Merkel ao pedido do vice-presidente dos Estados Unidos não foi imediata.
A chanceler alemã chegou mesmo a encarar a hipótese de enviar navios de guerra para o Estreito de Kerch, num comboio a formar conjuntamente com a França.
Vários motivos pesaram, porém, para que a decisão final fosse negativa.
Em primeiro lugar, a França rejeitou a ideia. Segundo fontes de Paris, o presidente Macron terá considerado a iniciativa uma provocação desnecessária a Vladimir Putin.
A consulta de Merkel ao chefe do regime de Kiev, Petro Porochenko, também não foi encorajadora em relação à iniciativa. Socorrendo-se da experiência acumulada durante o fracassado episódio de 25 de Novembro do ano passado, o presidente ucraniano alegou que o tipo de operação era “insuficiente” para provocar Putin.
Acresce – mas este terá sido o motivo com menos peso na decisão final – que as relações entre Pence e Merkel, por esses dias, não estavam num dos pontos mais altos.
O discurso de Merkel em plena Conferência de Segurança manifestou as preocupações de Berlim com as manobras de Washington contra interesses específicos alemães, designadamente ao incluir a indústria automóvel na subida exponencial das tarifas comerciais e, sobretudo, a campanha activa contra o projecto Nord Stream 2, o gasoduto russo-germânico.
No seu discurso, Pence respondeu em tom idêntico, lembrando à chanceler que a Alemanha está muito longe de respeitar a ordem em vigor no interior da NATO segundo a qual cada membro deve contribuir para a aliança com uma verba anual equivalente a dois por cento do Produto Interno Bruto.
A chanceler alemã terá mesmo sido desaconselhada de seguir a sugestão de Pence por esta ser, no fundo, uma acção contra o gasoduto: a criação de um conflito entre Berlim e Moscovo poderia ser o princípio do fim do próprio Nord Stream 2. Daí haver quadros destacados da CDU de Merkel que tenham estranhado o facto de a chanceler não ver imediatamente o significado da armadilha montada por Pence e ainda ter efectuado diligências junto de Macron.
A situação no Estreito de Kerch
O Estreito de Kerch é um ponto fulcral da maioria das operações conduzidas pela Ucrânia, os Estados Unidos e outros países da NATO para tentarem tirar um efeito desestabilizador regional do regresso da Península da Crimeia à soberania russa.
Uma decisão que foi tomada pela esmagadora maioria da população do território, em referendo efectuado sobre essa matéria. A NATO e a União Europeia não reconhecem a legitimidade da votação, como acontece com a generalidade das consultas populares algures no mundo – e no próprio espaço da UE – que tenham resultados que não se ajustam aos “interesses ocidentais”.
O Estreito de Kerch dá entrada no Mar de Azov, partilhado entre a Rússia e a Ucrânia.
Em 2003, os dois países estabeleceram um acordo segundo o qual o Mar de Azov estaria aberto à navegação autorizada por Kiev e Moscovo. Com a reintegração da Crimeia na Rússia, a Ucrânia denunciou o acordo.
Esta posição de Kiev e o facto de o estreito ligar agora duas plataformas territoriais russas, torna o acesso ao Mar de Azov dependente unicamente da fiscalização de Moscovo.
Tem sido prática russa a de manter o mar aberto à navegação com destino a portos russos e ucranianos, chegando a haver constrangimentos na travessia devido à acumulação de tráfego.
O incidente entre a Ucrânia e a Rússia em 25 de Novembro de 2018 não foi provocado por qualquer oposição de princípio russa ao movimento de navios ucranianos e de outras nacionalidades. As embarcações enviadas por Kiev eram militares, transportavam material de guerra e de espionagem e, sobretudo, não obedeceram às normas marítimas em vigor: identificação, respeito da espera pelo momento da travessia e aceitação das indicações das entidades responsáveis pelo controlo e movimento de tráfego.
Neste cenário, o envio de um comboio de navios de guerra alemães, tal como pretendia a administração Trump, não pareceria propriamente uma missão de paz.