TUDO SOBRE A PRESENÇA NORTE-AMERICANA EM ÁFRICA
2019-02-10
Nick Turse, The Intercept; edição O Lado Oculto
Os militares norte-americanos insistem há muito tempo que mantêm uma “leve presença” em África. Também existem relatos de propostas de retirada de forças de operações especiais e encerramento de actividades de tropas no continente, devido a uma emboscada ocorrida em 2017 no Níger e a um crescente foco assestado em rivais como a China e a Rússia. Mas, no meio disto, o Comando dos Estados Unidos em África (Africom) falhou em fornecer informações concretas sobre suas bases no continente, deixando em aberto a pergunta sobre quais seriam as reais dimensões da actuação americana.
No entanto, documentos do Africom obtidos pelo Intercept através da Lei de Liberdade de Informação oferecem uma oportunidade única para avaliar a extensa rede de destacamentos militares americanos em África, incluindo locais previamente secretos ou não confirmados em pontos cruciais como a Líbia, o Níger e a Somália. O Pentágono diz que as reduções de tropas em África serão modestas e realizadas ao longo de vários anos e que nenhum destacamento será fechado como resultado de cortes de pessoal.
De acordo com um briefing feito em 2018 por Peter E. Teil, conselheiro científico do Africom, a constelação de bases militares inclui 34 locais espalhados pelo continente, com grandes concentrações no norte e no oeste, assim como no Corno de África. Essas regiões, não surpreendentemente, também foram alvos de diversos ataques de drones norte-americanos e ataques de infantaria de menor impacto nos últimos anos. Por exemplo, a Líbia – alvo de missões de infantaria e ataques de drones, mas em relação à qual o presidente Trump disse não ver nenhum papel dentro das forças armadas norte-americanas no ano passado – é local de três postos militares até então não revelados.
“O plano de posicionamento do Comando dos EUA em África é feito para garantir o acesso estratégico a locais-chave num continente caracterizado por grandes distâncias e infraestruturas limitadas”, disse o general Thomas Waldhauser, comandante do Africom, à Comissão das Forças Armadas do Congresso, embora sem fornecer dados precisos sobre o número de bases. “A nossa rede de posicionamento permite efectuar testes de tropas para fornecer flexibilidade operacional e respostas adequadas a crises envolvendo cidadãos ou os interesses norte-americanos sem passar a ideia de que o Africom está a militarizar a África.”
Segundo Adam Moore, professor assistente de Geografia na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e especialista na actuação militar norte-americana em África, “está a tornar-se mais difícil para os militares norte-americanos afirmarem plausivelmente que têm uma ‘leve presença’ em África. Só nos últimos cinco anos foi estabelecido o que talvez seja o maior complexo de drones do mundo no Djibuti – Chabelley – que está envolvido em guerras em dois continentes, no Iémen e ainda na Somália.” Moore também revelou que os Estados Unidos estão a construir uma base de drones ainda maior em Agadez, no Níger. “Certamente, para as pessoas que vivem na Somália, no Níger e no Djibuti, a noção de que os EUA não estão a militarizar os seus países soa muito falsa”, disse.
Presença pouco visível
Nos últimos 10 anos, o Africom não apenas procurou definir a sua presença como sendo de dimensões limitadas, mas também como se os seus postos fossem pequenos, temporários, pouco além de bases locais onde soldados norte-americanos não passam de inquilinos. Um exemplo disto é como o general Waldhauser descreveu um posto secreto de drones na Tunísia, no ano passado: “não é uma base nossa, é dos tunisianos”. Em visita recente a instalações norte-americanas no Senegal, o chefe do Africom empenhou-se em destacar que os Estados Unidos não tinham intenção de estabelecer uma base permanente no país. Ainda assim, não há dúvidas sobre a dimensão da rede de postos do Africom ou de seu crescimento em infraestruturas. Só a Air Forces Africa, a componente de comando aéreo, recentemente concluiu ou está a trabalhar em cerca de 30 projetos de construção em quatro países de África. “A actuação dos EUA no continente africano cresceu visivelmente na última década para promover interesses de segurança norte-americanos no continente”, disse ao Intercept a comandante da Marinha Candice Tresch, porta-voz do Pentágono.
Enquanto China, França, Rússia e Emirados Árabes aumentaram seu próprio envolvimento militar em África nos últimos anos, e vários outros países agora possuem postos no continente, nenhum atingiu o tamanho da presença norte-americana. A China, por exemplo, possui apenas uma base em África – uma instalação em Djibuti.
De acordo com os documentos obtidos pelo Intercept através da Lei de Liberdade de Informação, a rede de bases do Africom inclui postos “permanentes” maiores, consistindo em locais operacionais avançados (FOS, na sigla em inglês) e unidades de segurança cooperativa (CLS, na sigla em inglês), assim como diversos outros recintos austeros conhecidos como locais de contingência (CL na sigla em inglês). Todos eles estão localizados no continente africano, com exceção de um FOS na Ilha de Ascensão, sob a soberania do Reino Unido, no sul do Atlântico. O mapa de Teil do “Posicionamento Estratégico” do Africom nomeia os locais específicos de todos os 14 FOSs e CSLs e fornece a localização específica em cada país para os 20 locais de contingência. O Pentágono, porém, não afirmou se o registo era completo, citando preocupações sobre fornecer publicamente os números de forças implantadas em postos específicos ou países em particular. “Por razões de segurança operacional, relatos completos do estabelecimento de forças específicas não são divulgáveis”, disse Tresch.
Como tropas e destacamentos vêm e vão periodicamente do continente, e alguns locais utilizados por forças de infantaria conduzindo missões complexas são provavelmente mantidos em segredo, o mapa de Teil representa o registo mais actualizado e completo disponível e indica as áreas do continente de maior preocupação para o Africom. “A distribuição de bases sugere que as forças armadas dos Estados Unidos estão organizadas em torno de dois palcos do contraterrorismo em África: o Corno de África – Somália, Djibuti, Quénia e Líbia; e o Sahel – Camarões, Chade, Níger, Mali e Burkina Fasso”, disse Moore, da UCLA, observando que os EUA só possuem uma base no sul do continente.
Níger, Somália e Quénia
O briefing de Teil confirma, pela primeira vez, que os militares norte-americanos possuem actualmente mais postos no Níger – cinco, incluindo duas unidades de segurança cooperativa – do que em qualquer outro país na região ocidental do continente. Niamey, a capital do país, é onde se localizam a Base Aérea 101, um posto norte-americano de drones já antigo anexado ao Aeroporto Internacional Diori Hamani; as instalações de uma Base Avançada de Operações da Força de Operações Especiais; e a central da África Ocidental para os serviços de recuperação de pessoal e de evacuação de acidentes fornecidos pelo Africom. A outra CSL, no remoto centro de contrabando de Agadez, está em condições de se tornar o principal destacamento militar norte-americano na África Ocidental. A base de drones localizada na Base Aérea 201 do Níger não apenas ostenta um valor de construção de 100 milhões de dólares mas, contando com as despesas de operação, deve custar aos contribuintes norte-americanos mais de 25 mil milhões de dólares até 2024, quando o contrato de utilização por 10 anos acabar.
Oficialmente, a CSL não é “nem uma instalação, nem uma base americana”. Trata-se, de acordo com os militares, “de apenas uma unidade que, quando necessário e com a permissão do país parceiro, pode ser utilizada pelos americanos para apoiar uma gama de contingências”. A dimensão, o custo e a importância totais de Agadez parecem sugerir o contrário. “Julgando pelo seu tamanho e pelos investimentos em infraestruturas até o momento, Agadez parece-se mais com as enormes bases que os militares criaram no Iraque e no Afeganistão do que com pequenas e discretas ocupações”, disse Moore.
A presença dos militares norte-americanos no Níger ganhou grande exposição no ano passado quando, em 4 de Outubro, uma emboscada atribuída ao ISIS na região do Grande Saara, próximo da fronteira com o Mali, matou quatro soldados norte-americanos, incluindo “boinas verdes” (membros das Forças Especiais), e feriu outros dois. Uma investigação do Pentágono sobre o ataque contribuiu para centrar a atenção noutros importantes locais da presença militar dos EUA no Níger, incluindo Ouallan e Arlit, onde forças das Operações Especiais (SOF, na sigla em inglês) realizaram acções em 2017; e Marandi, para onde as SOF foram enviadas em 2016. Arlit também apareceu como um possível local de contingência num plano de posicionamento do Africom, anteriormente secreto, obtido pelo Intercept. Ouallan, que estava listado em contratos trazidos a público pelo Intercept no ano passado, foi o local de uma task force das SOF para treinar e equipar uma companhia antiterrorismo no Níger, e também para conduzir operações com unidades locais. Documentos de contratação de 2017 também mostraram a necessidade de mais de 16 mil litros de gasolina, cerca de 4100 de diesel e quase 23 mil litros de combustível para aviação por mês a serem entregues a cada 90 dias numa “instalação militar” em Dirkou.
Enquanto as cinco bases no Níger ancoram o oeste do continente, os cinco postos na Somália comandam no leste. A Somália é o centro dos serviços de recuperação e de evacuação de pessoal por parte de empresas contratadas; é também o nó principal para as operações de recuperação e evacuação de pessoal do próprio Exército. Estes locais, revelados nos mapas do Africom pela primeira vez, não incluem uma base da CIA revelada em 2014 pelo The Nation.
Todas as instalações militares dos EUA na Somália, por serem locais de contingência, não são nomeadas no mapa do Africom de 2018. Anteriormente, Kismayo foi identificado como um importante local, enquanto o plano de posicionamento do Africom de 2015 propunha CLs em Baidoa, Bosaaso, na capital, Mogadíscio, e também em Berbera, no Estado separatista da Somalilândia. Se o mapa de Teil estiver correcto, um dos locais somalis fica nesta região. Reportagens da Vice News no início de 2018 indicaram que havia seis novas instalações norte-americanas em construção na Somália, assim como a expansão de Baledogle, uma base para a qual um contrato de “reparações de pista de emergência” foi recentemente submetido.
De acordo com os documentos confidenciais obtidos pelo Intercept em 2015, tropas de elite de uma unidade conhecida como Task Force 48-4 estavam envolvidas em ataques de drones na Somália no início desta década. Essa guerra aérea continuou nos anos seguintes. Conforme a Foundation for Defense of Democracies (Fundação para a Defesa de Democracias), os Estados Unidos conduziram 36 ataques aéreos na Somália em 2018, comparados com 34 em 2017 e 15 em 2016.
O vizinho da Somália, o Quénia, ostenta quatro bases norte-americanas. Estas incluem unidades de segurança cooperativa em Mombaça e Manda Bay, onde um estudo do Pentágono de 2013 sobre operações secretas de drones na Somália e no Iémen mostrou que duas aeronaves tripuladas tinham aquele local como base. O plano de posicionamento do Africom de 2015 também menciona unidades de contingência em Lakipia, local de uma base da Força Aérea Queniana, e outro campo de aviação queniano em Wajir, que passou por melhorias e foi expandido pela Marinha dos EUA no início da década.
Líbia, Tunísia e Djibuti
O mapa de Teil mostra um grupo de três locais de contingência não nomeados e anteriormente secretos próximos do litoral líbio. Desde 2011, os Estados Unidos levaram a cabo cerca de 550 ataques com drones supostamente contra militantes da al-Qaida e do Estado Islâmico na Líbia. Durante um período de quatro meses em 2016, por exemplo, houve aproximadamente 300 ataques desse tipo, segundo oficiais norte-americanos. Esse número é sete vezes maior que os 42 ataques com drones confirmados pelos Estados Unidos na Somália, Iémen e Paquistão somados, em todo o ano de 2016, de acordo com dados compilados pelo Bureau of Investigative Journalism, uma organização noticiosa sem fins lucrativos sediada em Londres. Os ataques na Líbia continuaram no governo Trump, com o mais recente episódio reconhecido pelos EUA tendo ocorrido perto de Al Uwaynat em 29 de novembro de 2018. O plano de posicionamento do Africom em 2015 listava apenas um posto em al-Wigh, um campo de aterragem no Saara próximo da fronteira com o Níger, o Chade e a Argélia, localizado bem ao sul dos três CLs atuais.
O mapa do Africom também mostra um local de contingência na vizinha Tunísia, possivelmente a Base Aérea Sidi Ahmed, um posto-chave de drones mantidos pelos EUA na região, que teve um papel importante nos ataques à Líbia dos últimos anos. “Como se sabe, usar drones de inteligência, vigilância e reconhecimento a partir da Tunísia é algo que vem acontecendo há algum tempo”, disse Waldhauser, o comandante do Africom, no ano passado. “Nós voamos lá, não é segredo, mas respeitamos muito os desejos dos tunisianos em termos de como nós os apoiamos e da necessidade de mantermos um perfil discreto…”
Djibuti é onde fica a menina dos olhos dos EUA no continente, a base de Camp Lemmonier, um antigo posto da Legião Estrangeira Francesa e o único local de operações avançadas do Africom. Um centro de longa data para operações antiterrorismo no Iémen e na Somália e lar da Task Force Conjunta-Corno de África (CJTF-HOA, na sigla em inglês), o Camp Lemmonier recebe cerca de quatro mil soldados norte-americanos e aliados; segundo Teil, é a “principal plataforma” dos EUA para resposta a crises em África. Desde 2002, a base foi ampliada de 35 para quase 243 hectares e gerou um posto-satélite – um local de segurança cooperativa 10 quilómetros ao sudoeste, para onde as operações com drones no país foram levadas em 2013. A pista de aterragem de Chabelley tornou-se, desde então, uma base integral para missões na Somália e no Iémen, e também na guerra de drones alegadamente contra o Estado Islâmico no Iraque e na Síria. “Os militares dos Estados Unidos continuam mobilizados em Djibuti, inclusive por razões de posicionamento para operações antiterrorismo e antipirataria nos arredores do Corno de África e da Península Arábica, e para oferecer apoio de contingência no aumento de segurança das embaixadas no Leste Africano”, assinalou o presidente Donald Trump em Junho de 2018.
Camarões, Mali e Chade
O posicionamento estratégico do Africom inclui ainda dois locais de contingência nos Camarões. Um deles é um posto no norte do país conhecido como CL Garoua, utilizado em missões com drones e também como uma base para a Task Force Darby do Exército, que apoia tropas camaronesas que combatem o grupo terrorista Boko Haram. Os Camarões também sediam um antigo destacamento em Douala, além de instalações dos EUA em Maroua e uma base próxima conhecida como Salak, também usada por militares norte-americanos e funcionários terceirizados para missões de treino e vigilância com drones. Em 2017, a Amnistia Internacional, a empresa de sondagens londrina Forensic Architecture e o Intercept revelaram prisões ilegais, torturas e assassinatos cometidos por tropas camaronesas em Salak.
No vizinho Mali, há dois locais de contingência. O plano de 2015 do Africom lista propostas de CLs em Gao e na capital do Mali, Bamako. O mapa de 2018 também aponta a existência de um CSL na capital do Chade, N’Djamena, um local onde os EUA começaram a utilizar drones no início desta década; também é o quartel-general de um Elemento de Controlo e Comando de Operações Especiais, que coordena um batalhão de elite. Outro local de contingência não-identificado no Chade poderá estar em Faya Largeau, um CL mencionado no plano de 2015 do Africom.
No Gabão, um local de segurança cooperativa existe em Libreville. No ano passado, tropas dos EUA promoveram um exercício na região para testar a sua capacidade para transformar o CSL de Libreville num posto de comando avançado, de maneira a facilitar o movimento de um grande número de soldados. Um CSL também pode ser encontrado em Acra, Gana, e outro CSL está localizado num pequeno complexo na Base Aérea Capitão Andalla Cissé em Dakar, no Senegal. “Este local é muito importante para nós porque ajuda a mitigar questões de tempo e espaço num continente do tamanho de África”, disse o comandante Waldhauser numa visita à capital senegalesa no início de 2018.
Apenas uma base fica no sul do continente, um CSL na capital de Botswana, Gaborone, que é mantida pelo Exército. Ao norte, o CSL Entebbe, no Uganda, tem sido uma base aérea importante há muito tempo para as forças norte-americanas em África, servindo como uma central para aeronaves de vigilância. Também foi importante para a Operação Oaken Steel, uma rápida mobilização de tropas ocorrida em Julho de 2016 para resgatar equipas norte-americanas depois de se terem iniciado conflitos perto da Embaixada Americana em Juba, no Sudão do Sul.
“Aumentámos o poder de fogo”
Em Maio, respondendo a perguntas sobre as medidas tomadas após a emboscada de Outubro de 2017 no Níger, Waldhauser falou em fortalecer a actuação dos EUA no continente. “Eu não vou entrar em detalhes, mas nós aumentámos o poder de fogo, aumentámos a capacidade de vigilância, inteligência e reconhecimento, e melhorámos os nossos tempos de resposta”, disse o comandante.
Esse poder de fogo inclui drones. “Estamos a armar-nos no Níger, e vamos usar esse reforço conforme necessário”, afirmou Waldhauser em meados de 2018, fazendo referência à presença de aeronaves pilotadas remotamente, agora baseadas na região.
O Africom não respondeu aos vários pedidos para uma entrevista com Waldhauser.
Após meses de relatos segundo os quais o Departamento de Defesa estava a considerar uma grande redução nas forças de Operações Especiais em África, além do encerramento de postos militares na Tunísia, Camarões, Líbia e Quénia, o Pentágono agora diz que menos de 10% dos 7200 militares do Africom serão retirados nos próximos anos, e que nenhuma base será fechada por conta disso. De facto, a construção de bases nos EUA vive um boom. Auburn Davis, porta-voz da Air Forces Africa, disse que a Força Aérea recentemente completou 21 projetos no Quénia, Tunísia, Níger e Djibuti, e ainda tem sete outros em andamento no Níger e em Djibuti.
“A proliferação de bases no Sahel, na Líbia e no Corno de África sugere que as missões antiterrorismo do Africom nessas regiões do continente vão continuar indefinidamente”, disse Adam Moore, da UCLA. Horas após Moore tecer estes comentários, o Pentágono anunciou que seis empresas haviam sido seleccionadas para um contrato de até cinco anos e 240 milhões de dólares para projectar e construir instalações navais em África, começando pelo prolongamento da pista no Camp Lemmonier, em Djibuti.