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IÉMEN: ONDE NÃO SE OUVEM OS GRITOS DAS CRIANÇAS

Sem palavras

2019-01-10

Jeffrey St. Clair, Counterpunch/O Lado Oculto

Agora já sabemos o que é preciso para que um assunto sobre a Arábia Saudita seja verdadeiramente notícia. Deve ser assassinado um jornalista numa embaixada, sob as ordens do príncipe herdeiro; o corpo esquartejado com uma serra cirúrgica e os restos dissolvidos num tanque de ácido. Mas não um qualquer jornalista. Os sauditas já assassinaram e prenderam muitos jornalistas. Jamal Khashoggi, porém, era um jornalista que trabalhava para o Washington Post, um jornal que pertence ao homem mais rico do mundo. Habitualmente, aos sauditas basta comprar aqueles que os incomodam com críticas. Mas podem ter encontrado em Jeff Bezos um homem rico demais para ser comprado.

Até hoje, contudo, ainda não registámos protestos angustiados do Washington Post, ou do New York Times, pelo facto de há três meses um avião de combate da Arábia Saudita ter bombardeado um autocarro escolar na pequena cidade iemenita de Dahyan. O veículo parou em Dahyan para se reabastecer de bebidas, depois de um piquenique, e seguia no caminho de regresso à escola quando foi atingido por uma bomba MK82 a laser, fabricada pela Lockheed e vendida aos sauditas pelo Pentágono. O atentado matou 50 pessoas, todas elas civis; 30 eram crianças, a maioria das quais ainda não tinham completado 10 anos. Outras 48 pessoas ficaram feridas.
Yahya Hussein, um dos professores da escola, conduzia um automóvel particular logo atrás do autocarro. Chegou a Dahyan alguns minutos depois do ataque aéreo e encontrou um cenário macabro. “Havia pedaços de corpos humanos espalhados por todo o lado”, revelou à Al Jazeera.

“Ataque legítimo”

Os sauditas não se incomodaram em limpar o sangue e recolher os membros decepados. Em vez disso, o príncipe herdeiro, Mohamed bin Salman, declarou que o bombardeamento do autocarro escolar foi “um ataque militar legítimo”. Dias depois, os sauditas bombardearam o cortejo fúnebre de uma das vítimas, matando e mutilando mais uma dezena de pessoas. Disseram que as vítimas estavam a ser usadas como escudos humanos pelas milícias Huthi. “Tenho muitas coisas para falar com os sauditas”, brincou Trump em declarações públicas. “Uma delas é que não temos pessoas que não sabem usar armas e disparam contra autocarros com crianças”.
Poder-se-ia esperar, pelo menos, uma ligeira introspecção do Pentágono na sequência desta terrível chacina infantil.
Em vez disso, fomos contemplados com alguns disparates aterradores proferidos pelo general favorito dos neoliberais, James Mattis, explicando que o papel dos Estados Unidos na guerra (do Iémen) é ajudar a evitar a morte de civis. O que suscita a seguinte pergunta: quantas pessoas estarão a ser mortas porque os sauditas não sabem manobrar as suas armas norte-americanas e a imprensa não está por perto para dar conta do número de corpos decepados?
Afinal de contas, o bombardeamento de Dahyan esteve longe de ser o primeiro massacre de civis cometido pelos sauditas usando “bombas inteligentes” fabricadas nos Estados Unidos. Em Março de 2016, 97 civis foram mortos quando forças sauditas bombardearam o mercado de Kames em Mastaba. Segundo a organização Human Rights Watch, 25 vítimas desse ataque eram crianças. Sete meses depois, os sauditas lançaram outro míssil teleguiado por laser contra as instalações onde decorria um velório, em Sanaa, matando 195 civis. Entre outras atrocidades, está registado que os militares sauditas bombardeiam hospitais, escolas, instalações de abastecimento de energia e de tratamento de águas, violando o direito internacional.

Os longos braços de Obama e Trump

Um apuramento parcial dos efeitos dos ataques aéreos sauditas apoiados pelos Estados Unidos dá conta de mais de cinco mil mortos, 60% dos quais civis. Esta ilegalidade letal acabou, a certa altura, por ser considerada excessiva pelo próprio rei dos drones. Logo a seguir ao bombardeamento de Sanaa, Obama ordenou a suspensão de novas vendas de armas aos sauditas. É claro que, até essa altura, o seu governo já tinha vendido à Arábia Saudita mais de 115 mil milhões de dólares em armas, a maior fatia comercializada por qualquer administração em 70 anos de relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita.
A proibição foi rapidamente suspensa por Donald Trump, que não perdeu tempo em negociar o seu próprio contrato de 110 mil milões de dólares de armamento com a Casa de Saud.
A agressão ao Iémen, iniciada sob Obama e acelerada por Trump pode ser legitimamente qualificada como uma guerra contra as crianças. A fome que assola o país, em grande parte resultante do esmagador embargo que o atinge, pode ser a mais grave do planeta em mais de um século, segundo as Nações Unidas. Mais de 1,8 milhões de crianças estão a ser atingidas pela falta de alimentos, e pelo menos 130 morrem diariamente.
Apesar do número crescente de vítimas mortais, o Iémen continua a ser um lugar de que poucos norte-americanos ouviram falar ou que não sabem apontar num mapa. No entanto, é o lugar onde Barack Obama ordenou o assassínio com um drone do cidadão norte-americano Anwar al-Awlaki; e onde, duas semanas depois, mandou fazer outro ataque que matou o filho com 16 anos, Abdulrahman, também cidadão norte-americano. Não fora levantado qualquer processo contra qualquer uma das vítimas dos actos determinados pelo presidente galardoado com o Nobel da paz.
Foi também no Iémen que Donald Trump cometeu o seu primeiro crime de guerra, autorizando o ataque de um comando numa aldeia que matou 15 civis, entre eles Nora, de oito anos, filha de Anwar al-Awlaki. Por que razão os Estados Unidos estão a assassinar crianças no Iémen? Quem deu autorização? Qual é o objectivo? Para quando se prevê o fim do massacre? Ninguém diz. Poucas vozes se incomodam em perguntar, seja no Congresso, seja na comunicação social.
Esta não é uma guerra secreta, como a do Afeganistão sob Jimmy Carter. É ainda pior: uma guerra que ninguém se incomoda a mencionar, avaliar ou debater. O Iémen é o lugar de onde não se ouvem os gritos, mesmo quando alguém grita de horror ao ver os corpos desmembrados de crianças de 10 anos que já foram suas alunas.


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