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O ITAMARATY, A DESOBEDIÊNCIA, A "LIMPEZA"

Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto em Paris

2018-12-21

Franklin Frederick, GGN/O Lado Oculto

                                                                                                              "(…)pátria para sempre passada, memória quase perdida." 
                                                                                                                                                 Eça de Queiroz, "O crime do Padre Amaro"

Houve um tempo, que hoje parece muito, muito distante, em que intelectuais do Itamaraty eram um Luiz Martins de Souza Dantas, um João Guimarães Rosa ou um João Cabral de Melo Neto. Actualmente, de acordo com o Presidente eleito Jair Bolsonaro, o «grande intelectual» do Itamaraty é o futuro Ministro das Relações Exteriores, o Sr. Ernesto Araújo que, melhor do que ninguém, representa o «novo» Brasil deste governo. Coerente com suas idéias e em sintonia com as expectativas e desejos do Presidente eleito e dos que o apoiam, o futuro chanceler já anunciou que fará uma "limpeza" no Itamaraty tendo "petistas", "comunistas", "socialistas»"e "esquerdistas" em geral como alvo. Diante disso, é importante resgatar um pouco de uma outra história do Itamaraty e de alguns de seus diplomatas, para mostrar que um outro mundo já foi possível, algo que não podemos esquecer.

Luiz Martins de Souza Dantas foi embaixador em Paris de 1922 a 1944. A partir de 1940, com a França em parte ocupada pelo exército alemão e sob o governo colaboracionista e pró-nazi de Vichy, Souza Dantas começou a conceder vistos para que refugiados do nazismo, judeus, homossexuais, comunistas e quaisquer outros ameaçados pela barbárie nazi pudessem escapar para o Brasil. Devido à legislação da época não era comum um embaixador conceder vistos pessoalmente; e para os "indesejáveis" - na maioria judeus – obterem um visto era necessário a apresentação de uma série de documentos que, na prática, eram impossíveis de obter. Além disso, muitos dos requerentes de asilo  possuíam como documento apenas um passaporte «Nansen» fornecido pela Liga das Nações para indivíduos expatriados por problemas políticos. Para piorar a situação, o Consulado Brasileiro era obrigado a informar a "origem étnica" do solicitante de visto, tudo isso com o objetivo de impedir a entrada destes refugiados no Brasil. Souza Dantas ignorou todas estas regras e simplesmente passou a assinar passaportes e outros documentos de viagem de vários fugitivos do nazismo, pessoas comuns que puderam escapar para o Brasil, entre as quais um polaco chamado Zbigniew Ziembinski. Até 12 de dezembro de 1940 – quando Souza Dantas foi formamelmente proibido de conceder mais vistos – por volta de 500 já haviam sido emitidos. E, segundo depoimentos de vários refugiados, mesmo depois desta data Souza Dantas continuou a conceder vistos, colocando uma data anterior a 12 de Dezembro no documento. Com a entrada do Brasil na guerra, os jornais brasileiros começaram a tratar Souza Dantas como um herói, o que desagradou profundamente ao ditador Getúlio Vargas, que tratou de manter o embaixador no ostracismo, do qual só sairia depois da queda da ditadura. A desobediência e a coragem de Souza Dantas salvaram centenas de vidas.

Aracy Moebius de Carvalho, funcionária do Consulado do Brasil em Hamburgo, já a partir de 1937 também ajudou vários judeus a fugirem da Alemanha nazi. Como aos judeus era negado o visto de entrada no Brasil, Aracy misturava os papéis a serem assinados pelo cônsul brasileiro ou simplesmente omitia a informação de que o requerente era judeu. Nessa operação, a partir de 1938, Aracy passou a contar com a ajuda do novo cônsul-adjunto em Hamburgo, João Guimarães Rosa. Ambos desafiaram frontalmente as instruções do governobBrasileiro na época. Aracy casou-se depois com Guimarães Rosa, que lhe dedicou o "Grande Sertão: Veredas". E mais uma vez a desobediência de dois diplomatas brasileiros ajudou a salvar a vida de centenas de seres humanos.

Souza Dantas e Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa têm os seus nomes incluídos na lista dos Justos Entre as Nações no memorial Yad Vashem, em Isarel, um dos principais centros de estudos sobre o Holocausto.

João Cabral de Melo Neto, por sua vez, foi vítima de uma outra «caça às bruxas» dentro do Itamaraty. Denunciado por um colega diplomata por "práticas comunistas"  – o que parece será o procedimento exigido pelo próximo chanceler – João Cabral teve de deixar o cargo de segundo secretário da Embaixada do Brasil em Londres.

O jornal Tribuna da Imprensa de 27 de junho de 1952 trazia como manchete "Traidores no Itamaraty", denunciando o que seria uma "célula comunista", à qual deu inclusive o nome de "célula Bolívar", actuando dentro do Ministério das Relações Exteriores e que seria liderada por João Cabral. Devido a esta acusação, o Itamaraty abriu processo administrativo contra João Cabral, que só foi informado sobre o mesmo quando da publicação no Diário Oficial do acto de punição que o colocou em disponibilidade por tempo indeterminado e sem vencimentos. Ainda mais, o Presidente Vargas mandou colocar a denúncia contra João Cabral no próprio Conselho de Segurança Nacional, acusando-o de planear desmembrar o território nacional por meio de movimento armado (!!!). Estas acusações estapafúrdias soam estranhamente actuais, com a "célula Bolívar" invocando o "perigo" representado pela Venezuela e os bolivarianos. Não será surpresa se o novo chanceler e seus apoiantes se inspirarem  neste episódio para suas anunciadas futuras acções. Em 1954 o Supremo Tribunal Federal absolveu João Cabral de Melo Neto dessas acusações, mas a sua reintegração definitiva no Itamaraty só ocorreu em 1955, por acto do Presidente Juscelino Kubistchek.

Poderíamos ainda lembrar o diplomata Paschoal Carlos Magno, criador do Teatro do Estudante, e de Vinícius de Moraes,  diplomata que também sofreu perseguições dentro do Itamaraty em mais um episódio profético.

As ações de Souza Dantas, de Aracy e de João Guimarães Rosa em favor dos refugiados e contra a orientação do Itamaraty na época, sem dúvida não seriam toleradas pelo novo chanceler Ernesto Araújo. Paschoal Carlos Magno e seu Teatro de Estudantes certamente seria considerado um "marxista cultural" a ser expulso do Ministério; Vinícius de Moraes, pelo seu envolvimento com o samba, com os músicos populares e que escreveu, na canção "«Como dizia o poeta" , "pra que somar se a gente pode dividir", seria chamado hoje de "tarado comunista" e sumariamente preso; e João Cabral de Melo Neto, autor de "Morte e Vida Severina", coitado, não teria a menor chance…

Mas estes nomes representam o melhor de nosso Ministério das Relações Exteriores, uma verdadeira glória para o Itamaraty. Talvez nenhuma outra nação se possa orgulhar tanto de ter tido servidores como estes no seu serviço diplomático.

Não sei se está nos planos do novo chanceler apagar esta história, pode ser. Resta-nos esperar que Souza Dantas, Aracy e João Guimarães Rosa tenham deixado sementes de rebeldia dentro do Itamaraty que sejam seguidas pelos diplomatas de hoje. Que a vida e a obra de Paschoal Carlos Magno e Vinícius de Moraes ajudem a construir uma resistência alegre e contundente a isso que  está aí. E que a poesia de João Cabral de Melo Neto seja a mais profunda resposta ao fundamentalismo ignorante e desumano que procura tomar o país, como neste poema :

As Latrinas do Colégio Marista do Recife

Nos Colégios Marista (Recife),

se a ciência parou na Escolástica,

a malvada estrutura da carne

era ensinada em todas as aulas,

com os vários creosotos morais

com que lavar gestos, olhos, língua;

à alma davam a água sanitária

que nunca usavam nas latrinas.

Lavar, na teologia marista,

é coisa da alma, o corpo é do diabo;

a castidade dispensa a higiene

do corpo, e de onde ir defecá-lo.

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