“ACORDO DO SÉCULO” OU CRIME DO SÉCULO?
2018-09-01
José Goulão; com Edward Barnes, Beirute, e Martha Ladesic, Nova York
Chamam-lhe “acordo do século” ainda antes de ter sido divulgado publicamente; o que dele se vai sabendo, porém, revela antes um plano para cometer o crime do século impondo a capitulação total do povo palestiniano perante a arbitrariedade israelo-norte-americana, à custa do direito internacional, dos direitos humanos e espezinhando as Nações Unidas.
O chamado “acordo do século” não passa de um projecto elaborado no interior da Administração norte-americana para impôr de vez “a paz no Médio Oriente” e cujo conteúdo esteve várias vezes para ser divulgado ao longo dos últimos meses. Porém, e apesar de não ser conhecido na sua globalidade, o plano tem levantado tantas reservas, mesmo entre os principais aliados de Washington, que os autores ainda não se atreveram a revelá-lo.
Consta que isso acontecerá durante a próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, que se inicia em 18 de Setembro, pela voz do próprio presidente norte-americano, Donald Trump. Como tal não é ainda seguro, torna-se fundamental ter ideia da gravidade do que se prepara fazendo eco de elementos avulsos obtidos junto de fontes oficiais e oficiosas conhecedoras do essencial do processo.
A base estratégica do “acordo do século” é fazer tábua rasa de todo o acervo histórico e jurídico do problema israelo-palestiniano, desde as resoluções do Conselho de Segurança aos termos resultantes das várias fases de negociações de paz, incluindo o princípio da coexistência de dois Estados na Palestina.
Os responsáveis
O plano reflecte a cada vez mais absoluta fusão estratégica entre a Administração norte-americana e a extrema-direita sionista no poder em Israel, exemplificada pela transferência da Embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém.
Uma das provas mais fortes de que o “acordo” é do tipo “esqueça tudo o que ficou para trás nos processos de paz no Médio Oriente” – como diz um responsável do Departamento de Estado que pediu para não ser identificado – está relacionada com uma actividade comum aos autores: todos eles estão envolvidos na colonização israelita da Cisjordânia, especialmente no financiamento do colonato ortodoxo de Beit El, nas vizinhanças de Ramallah, capital da Autonomia Palestiniana.
Além da associação ao expansionismo sionista, nenhum dos autores do “acordo do século” tem experiência em qualquer outro dos temas determinantes no conflito israelo-palestiniano. Jared Kushner era consultor de investimentos imobiliários antes de entrar na Administração norte-americana para trabalhar sob as ordens do sogro, Donald Trump presidente dos Estados Unidos; Jason Greenbatt, enviado especial do presidente norte-americano para o Médio Oriente, era anteriormente o principal conselheiro jurídico dos negócios privados de Trump; David Friedman, embaixador dos Estados Unidos em Israel, ganhava a vida como advogado de falências.
Uma colónia
Quais são então os caminhos para a “paz no Médio Oriente” idealizados por este trio, a rogo do presidente dos Estados Unidos, do primeiro ministro de Israel, do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, e do príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos. Mohamed bin Zayed?
O plano aborda as questões essenciais – Jerusalém, refugiados palestinianos, colonização, medidas de segurança e traçado de fronteiras – mas de uma maneira “inovadora” e que ambiciona ser definitiva.
Não há no documento qualquer alusão explícita à solução de dois Estados, a base do processo negocial existente até agora, assumida pelas instâncias da ONU e mesmo pelos principais aliados dos Estados Unidos da América – ao menos em termos de discurso oficial.
A Cisjordânia terá um estatuto de “quase-Estado”, isto é, segundo o criativo trio sionista, uma entidade desmilitarizada, com soberania limitada e capital em Abu Dis, uma aldeia nos subúrbios de Jerusalém na qual, durante os anos noventa do século passado, a direcção palestiniana admitiu construir o Parlamento Autónomo - à mesma distância dos lugares santos da cidade que está o Parlamento israelita.
Os colonatos judaicos – ilegais por definição - e outras estruturas de domínio israelita na Cisjordânia permanecerão intocados, sendo o plano omisso quanto ao destino do muro de separação. O “quase-Estado” continuaria a ser, deste modo, uma entidade sem continuidade territorial, fraccionada em comunidades praticamente sem comunicação entre si, na qual Israel conservaria o domínio sobre todo o Vale do Jordão. Do documento desaparecem alusões ao respeito pelas fronteiras de 1967 e ao estabelecimento da capital palestiniana em Jerusalém Leste, linhas mestras das principais decisões da ONU em relação ao conflito israelo-palestiniano.
O suporte financeiro deste projecto seria assegurado pela Arábia Saudita, os Emirados árabes Unidos e, eventualmente, outras petroditaduras do Golfo. Em algumas entrevistas que tem dado, Jared Kushner salienta que os palestinianos terão tudo a ganhar com os contornos económicos do plano, “pois são vizinhos do Silicon Valey do Médio Oriente – Israel”; tratando-se, além disso, “de um povo laborioso e educado, será capaz de beneficiar rapidamente da prosperidade israelita, desde que haja paz”. Quanto ao presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmud Abbas, que recusa quaisquer conversações nesta base, o genro de Trump acusa-o de “estar apegado a negociações velhas de 25 anos que não desembocaram em qualquer acordo de paz”.
O formato pretendido por Trump e Netanyahu para uma Cisjordânia “em paz”, em suma, é o de uma colónia de Israel fornecedora de bolsas de mão-de-obra escrava para os projectos económicos de Israel e dos colonatos israelitas, funcionando estes de maneira integrada.
Um emirado e um apêndice
A solução de dois Estados na Palestina, estabelecida desde 1948 e que reúne o apoio maioritário da chamada "comunidade internacional”, prevê ainda hoje que o Estado Palestiniano independente seja criado nos territórios ocupados de Cisjordânia e Gaza, com capital em Jerusalém Leste. Este é o resumo dos conteúdos de múltiplas resoluções do Conselho de Segurança da ONU e de projectos de acordo entre Israel e a parte palestiniana estabelecidos desde 1993. É também esse o objectivo inscrito na “iniciativa árabe de paz” apresentada em 2001 pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita.
O “acordo do século” tutelado por Donald Trump e Benjamin Netanyahu prevê, contudo, que a Faixa de Gaza se transforme num “mini-estado” independente ou autónomo, rigorosamente fechado a Israel e à Cisjordânia e aberto ao Egipto.
Até ao momento, tanto quanto se sabe nos bastidores diplomáticas, este plano envolvendo abusivamente o Egipto, não resulta de consultas efectuadas ao Cairo, nem tem sequer o acordo das autoridades egípcias.
Gaza é um imenso campo de concentração ferreamente encerrado por Israel e pelo Egipto, transformando a vida de quase dois milhões de pessoas num verdadeiro inferno.
Ao que consta, não existem da parte de Israel, dos Estados Unidos e dos príncipes herdeiros da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos reservas de maior em que o Hamas continue a controlar o território, que assim se transformaria numa espécie de “emirado”. Sabe-se que o movimento islamita e Israel continuam a negociar uma trégua de longa duração, processo que não será alheio a estes desenvolvimentos; e que dirigentes do Hamas têm manifestado a opinião de que é preferível “falar directamente com Israel em vez de negociar com os seus intermediários de Ramallah”. Não é novidade que todos os acordos anunciados entre a Autoridade Palestiniana e o Hamas para formar um governo “de unidade nacional” têm fracassado e que Israel multiplica esforços para que isso continue a acontecer.
Gaza teria um apêndice territorial, segundo a idealização de Kushner, Greenbatt e Friedman: uma “zona franca” a criar na Península do Sinai, entre a fronteira da faixa palestiniana e a cidade egípcia de El-Arich. Nesse território de soberania “híbrida” seriam construídos um porto e um aeroporto internacionais, uma estação de dessalinização de água do mar, uma central de energia eólica e cinco zonas industriais, representando tudo um investimento de mil milhões de dólares, mais uma vez a cargo das petroditaduras do Golfo, com Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos à cabeça.
Tanto quanto se percebe dos elementos conhecidos, Gaza e o seu apêndice poderiam ficar sob controlo do Hamas, em coordenação com o Egipto, que seria responsável pela administração do porto e do aeroporto internacionais.
Dois terços da força de trabalho necessária para o levantamento e manutenção destes projectos teriam origem em Gaza; um terço seria assegurado por El-Arich e outras regiões egípcias. Gaza e Cisjordânia tornar-se-iam duas entidades absolutamente estanques, institucionalizando-se a separação entre os dois territórios palestinianos nos quais, segundo o direito internacional vigente, deverá assentar o Estado Palestiniano.
O “acordo do século” resolve de uma penada o problema dos refugiados, as vítimas da mais longa limpeza étnica dos tempos modernos, a tragédia de milhões de pessoas expulsas dos seus lares e espoliadas dos seus bens iniciada em meados dos anos quarenta do século passado - e que prossegue sob os olhos cúmplices do mundo.
Trump, Netanyahu e os executores das suas ordens determinam que será excluído qualquer regresso de refugiados ou seus descendentes, ainda que simbólico. Cada vítima desta catástrofe receberá um subsídio de instalação no país de exílio ou de reinstalação num outro, dos quais adquirirão a nacionalidade. Cumprir-se-ia assim a máxima da antiga primeira-ministra israelita Golda Meir segundo a qual “os palestinianos não existem”. Também os subsídios sairiam dos sacos sem fundo das petroditaduras.
Armadilhas e ambições
No Departamento de Estado reconhece-se que um tal “acordo” é “uma armadilha diplomática” e equivale “a ditar a paz à força” no meio de um amplo conjunto de problemas entretanto agravados entre Washington e aliados, e não apenas os do Médio Oriente.
Em primeiro lugar, os milhares de milhões de petrodólares a investir pelas monarquias do Golfo para tornar possível este projecto não aparecem sem contrapartidas. O príncipe herdeiro saudita, por exemplo, exige a tutela partilhada dos lugares santos islâmicos de Jerusalém – até agora da responsabilidade da Jordânia – e o apoio norte-americano e israelita à ofensiva diplomática, económica, eventualmente militar contra o Irão, com a qual ele sonha permanentemente.
Porém, nem no interior das estruturas do poder fundamentalista da Arábia Saudita existe sintonia quanto às incidências do “acordo do século”. O velho rei Salman já declarou que a estratégia para a questão palestiniana em que o país continua oficialmente envolvido é a da “iniciativa árabe” de 2001, assente na solução de dois Estados. O príncipe herdeiro estaria, portanto, a correr em faixa própria, sem autoridade institucional para se envolver em transformações regionais desta envergadura.
O Egipto, a Jordânia e a Autoridade Palestiniana estão declaradamente contra o plano. O soberano jordano já o fez saber a Donald Trump; o Cairo e Ramallah nem sequer foram consultados. Como seria possível ver o Egipto actual, na sua guerra contra a Irmandade Muçulmana, assumir um projecto de soberania partilhada com um braço dessa mesma Irmandade, o Hamas?
O Qatar poderia ser um cofinanciador dos enormes investimentos desejados; o príncipe herdeiro saudita, porém, nem quer ouvir falar nessa hipótese, porque seria “introduzir o Irão no projecto, e pela porta das traseiras”.
Basta um breve enunciado destes problemas para se ter a noção das razões pelas quais a divulgação do “acordo do século”, prometendo a milagrosa “paz no Médio Oriente”, tem sido sucessivamente protelada.
Será chegada a hora de isso acontecer na próxima sessão da Assembleia Geral da ONU? Ousará Trump anunciar a intenção de anular e enterrar importantíssimas decisões das Nações Unidas em plena reunião magna dos membros da organização?
As contradições entre os “corpos gerentes” da actual ordem global são muitas e profundas. Se Trump insistir no seu plano para tentar cometer o crime do século, um dos resultados garantidos à partida é o agravamento da turbulência internacional.